segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Os contrastes da estrada


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Na estrada, onde toda a vida pulsa mais intensamente porque tudo é novo mesmo quando tudo já começa a parecer familiar, observo a fronteira EUA-México nas quatro horas de viagem para um final de semana na praia em South Padre, Golfo do México. Notam-se grandes contrastes(ou seria um balanço?):
- verdes plantações de cebola;
- secas pastagens com placas de ranchos na porteira, muitos com esculturas em ferro representando a típica cena do velho oeste (cowboys, cactus e cavalos);
- perfuradeiras de petróleo martelando o solo na coleta do ouro negro;
- casas velhas e descuidadas, com junk (lixo) empilhado nos jardins;
- mansões construídas na beira da highway (por que alguém constrói uma casa, ainda mais um casarão, na beira de uma movimentada pista? seria um amante da estrada? talvez um exibicionista?);
- cidadezinhas empoeiradas com seus belos prédios históricos caindo aos pedaços, entregues às almas do século retrasado;
- novos bairros e suas incontáveis lojas de cadeias dos séculos XX e XXI tinindo seus letreiros que massificam todos os novos bairros de todas as cidades deste país, causando a estranha sensação de que por mais que se ande, nunca se consegue sair do lugar;
- comida, muita comida: desde cadeias de fast-food a birosquinhas de BBQ (barbecue, que não é o churrasco brasileiro como muitos pensam, e sim carnes defumadas, como costela e linguiça, num molho marrom adocicado), coloridas barraquinhas de tacos e tortillas, vendedores de melancias, melões, pêssegos e mangas perfumadas e suculentas;
- um homem com um copo enfiado no vazio do braço amputado pedindo esmola no cruzamento na subida de um viaduto;
- uma igreja das Testemunhas de Jeová;
- um estabelecimento de streap-tease chamado Xoticas (pronuncia-se "Exóticas");
- um outdoor com uma campanha sobre cordialidade e cidadania;
- uma placa nos arredores de uma cadeia alertando motoristas para não darem carona a ninguém, pois podem ser fugitivos.

Paramos para ir ao banheiro na bela e esquecida Rio Grande City, fundada em 1848 e que já foi uma das principais rotas de comércio entre os EUA e o México. Sua placa indica que há 11.923 habitantes. Não se arredonda nada por aqui e não faço idéia sobre quando foi a última atualização. Imagino uma cidade sem mortes nem nascimentos. Estável e permanente, sem curvas de declínio ou crescimento. A highway atravessa o centro histórico. É impossível ficar alheia àqueles prédios semi-abandonados com placas e sinais ainda em caligrafia antiga do início do século XX. Belas casas que pararam no tempo para contar uma história de gerações, mas que as novas gerações simplesmente ignoram. Consigo ver as sombras de mulheres de anquinhas e sombrinhas passeando com seus sapatos de cetim e suas luvas de rendas, acompanhadas por seus esposos trajando ternos bem-passados e olhando para seus relógios de bolso. Eu não sei nada sobre aquele lugar, mas posso sentir o cheiro de colônia de uma época que não vivi. As velhas paredes sussurram passado.

No meu primeiríssimo e novo Blackberry busco no Google mais informações sobre a cidade. Descubro que a ex-primeira dama Lady Bird Johnson ficou hospedada no hotel histórico para uma viagem com o propósito de conhecer melhor as flores selvagens da primavera. Gosto disto. É uma nobre razão para se viajar e emana contraste também: inocência e aristocracia. Do lado de fora do posto, um homem de meia-idade dorme de pernas cruzadas num banquinho à sombra, a aba dianteira do seu chapéu de cowboy a lhe cobrir seus olhos. Da estrada, três homens no banco da frente de uma caminhonete gritam gracinhas para mim. Confesso que me sinto lisonjeada. Quando se sai do Rio de Janeiro, a terra das ousadias, toda mulher acaba sentindo falta de um fiu-fiu. Entro no posto. Eu e W somos os únicos clientes. O banheiro está trancado e temos que pedir a chave ao atendente. Pergunto em inglês a razão disto, mas noto que ele não me entende bem. Mudo para espanhol e ele responde que é para evitar a delinquência, já que vários clientes depredam o banheiro. "Teve um que deixou merda no chão e eu que tive que limpar".

Paramos para almoçar na cidadezinha de Zapata, no restaurante Paraiso, cuja especialidade é chicken fried steak, ou seja, bife frito da mesma maneira que se frita galinha por aqui, com uma grossa e crocante camada empanada sobre a carne. É domingo, 13h30 e o lugar está vazio. Isto não me parece muito bom. W diz que é porque aos domingos as famílias fazem churrascos nos seus quintais. Peço uma porção pequena e por US$ 8,00 como um bifão com molho gravy, salada de alface e tomate, purê, 2 fatias de pão de forma, arroz e feijão refrito. A não ser que você seja uma cruza de cavalo com leão, jamais peça uma porção grande neste país. Depois de comer metade da minha refeição, meu estômago já não aguenta mais -- não apenas porque não há mais espaço, mas verdade seja dita, a comida do Paraiso é meio infernal. Aos poucos os clientes vão chegando. 90% são senhores e senhoras de cabecinha branca e chapéus de cowboy. Parecem já ter estado ali centenas de vezes nas últimas quatro décadas.

Voltamos para a estrada. Observo o vôo dos falcões enquanto escutamos velhas revolucionárias canções irlandesas. Ao entrar em Laredo, enxergo as duas grandes bandeiras mexicana e americana flamulando no calor tórrido da tarde. Há uma sensação de conforto e alívio ao se chegar em casa, mas imediatamente já começo a planejar a próxima viagem. Contrastes pessoais. Tudo é tão yin yang nas fronteiras da minha alma.

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