domingo, 24 de janeiro de 2010

Saudade

Chega sem aviso. Não há alarme ressonando alto, não há placa no meio da estrada, não tem e-mail na caixa de entrada, nem carta selada no correio indicando sua vinda. Uma hora você está em paz, coloca aqueles sambas antigos na voz de Clara Nunes, "é água no mar/ é maré cheia ooooh", "morena de angola que leva o chocalho amarrado na canela", aí, de repente, peim. Está empossada. Possuída. Incubada. Vai percorrendo o sangue, apertando a carne, fazendo arder os olhos até enturvar a vista e o mundo ficar líquido. Sai uma, saem duas, saem três lágrimas grossas mas ainda dá pra cantar um "ninguém ouviu/um soluçar de dor/no canto do Brasil". Ferrou. A voz afina. A garganta é quase um túnel sem saída. A entoada é um soluçar de saudades num canto do Texas. Um choro em falsete. O coração cavado com colher (é possível sentir o músculo atrofiar). A mente momentaneamente (momentânea mente) conectada com o passado, com o bom do passado, aquelas rodas de samba, aquele Clube dos Democráticos, aquela Lapa carioca de tantas sensações. Não há tristeza, não há melancolia. Apenas saudade de algo que não volta mais e juro pelo São José enterrado de cabeça pra baixo no jardim na minha casa que eu não trocaria um dia desta vida nova por uma noite de samba com o meu mais fino suor derramando liras de Cartola. Foi-se o tempo, agora são novas trilhas sonoras, é preciso sempre viver novas canções, mas deixa eu aumentar o volume deste samba porque meu pranto é alto e eu quero este choro só para mim esta noite, para mim, para Clara e para Chico. E confesso que também para...bem, para Amelinha, meu segredo que só Cecília sabia e ela jurou que não contaria para ninguém nem sob tortura, mas Amelinha cantando Gemedeira é bonito demais da conta, "ai, ai, ai, é bom que dói, ui, ui, ui, chega a sangrar". E assim eu me entrego, valha-me Deus, tenho que ensinar meu gringo a dançar forró, a dançar for all. A dançar for me.

PS: Lágrimas são banhos de descarrego. Meu corpo é agora mais leve que o ar.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Notas sobre o México

Desde quando visitei o país pela primeira vez em 1998, em Ciudad Juarez, fronteira com El Paso no lado texano-americano, o México exerceu um fascínio anormal sobre mim. Desde então estive duas vezes na Cidade do México e mais recentemente duas vezes em Nuevo Laredo, na fronteira mais ao sul. Caí de quatro por sua riqueza cultural, sua culinária original e curiosa, sua ancestralidade azteca, seu caos sem ordem, suas cores abertas, sua religiosidade latina, sua música mestiça, seu povo ao mesmo tempo encantador, submisso, explorado e bravo. O México é um país que sangra e não falo da violência que lhe toma almas diariamente na guerra do narcotráfico ou na pobreza das suas sarjetas. Sangra no sentido de levar alimento para meus órgãos, meus músculos, meus olhos, meu tato, meu paladar e meu cérebro, saciando minha fome vampiresca por cultura estrangeira.

Hoje, a menos de suas semanas de me distanciar fisicamente desta fronteira geográfica, edito aqui o relato que fiz para amigos e familiares quando visitei Nuevo Laredo pela primeira em 13 de maio de 2009:

Na quarta-feira cruzamos a fronteira para Nuevo Laredo. Por pouco não fui, pois de uns três anos pra cá brasileiros precisam tirar visto para entrar no México, devido à quantidade de brasileiros ilegais que entram nos Estados Unidos via o país latino. W. tem amigos no consulado mexicano, então pela manhã paramos por lá para checar os pormenores da minha documentação. O cara do consulado me perguntou o que eu queria fazer no México. Expliquei que queria comprar tequila e ele achou aquilo engraçadíssimo. Então esclareceu que eu poderia cruzar a fronteira sem problemas, só não poderia sair dos limites da cidade. Aproximadamente a partir do marco 26km ao sul de Nuevo Laredo há um checkpoint de imigração e o visto a partir dali torna-se obrigatório. Assim, no final da tarde, após ter parado num bar bem furreco em Laredo para tomar um trago gelado de Don Julio (uma excelente tequila para os não familiarizados), cruzamos o Rio Grande através da Ponte Internacional número 1. São duas as pontes que fazem a travessia Laredo-Nuevo Laredo. Preferimos ir a pé, para evitar o trânsito denso da ponte no nosso retorno. Um frio na minha barriga por voltar a pisar em solo sagrado.

Descobri que a melhor coisa de Laredo é Nuevo Laredo. O México sempre teve este poder alucinante sobre a minha pessoa. Me sinto viva, numa sensação de embriaguez que é muito maior do que a tequila que sempre me acompanha nas minhas idas pra lá. As pessoas daqui morrem de medo de cruzar a ponte, pois houve um aumento muito grande de violência na fronteira por conta dos cartéis do narcotráfico. Coisas tipo tacar fogo nos inimigos, sequestros, cortar cabecas e outras gentilezas. Devem ter aprendido com os hermanos cariocas. Logo que cruzamos a ponte, havia um tanque do exército mexicano cercado por soldados. Depois de oito anos de Rio de Janeiro, já tenho um PhD em violência urbana, então eu estava tranquila.

Quem nos acompanhou aquele tarde foi Tom, um grande amigo de W., um senhor de sessenta e tantos anos, cara de Papai Noel, lobista político, ex-executivo de empresas texanas de gás e petróleo que ja morou na Bolívia e no Peru, democrata liberal que trabalhou com W. na campanha presidencial de Obama, figuraça que nos anos 60 foi host por mais de uma vez de ninguém menos que Jorge Luis Borges quando ele visitou a Universidade do Texas em Austin. Descobri que o Texas inspirou Borges, levando-o inclusive a escrever um belo poema:

Texas

Aquí también. Aquí como en el otro
Confín del continente, el infinito
Campo en que muere solitario el grito;
Aquí también el indio, el lazo, el potro.
Aquí también el pájaro secreto
Que sobre los fragores de la historia
Canta para una tarde y su memoria;
Aquí también el místico alfabeto
De los astros, que hoy dictan a mi cálamo
Nombres que el incesante laberinto
De los días no arrastra: San Jacinto
Y esas otras Termópilas, el Álamo.
Aquí también esa desconocida
Y anciana y breve cosa que es la vida.



A primeira vista de Nuevo Laredo traz ruas apertadas, barraquinhas de comida por todos os lados, cabritos assados enfiados num pau na vitrine de um restaurante, lojas com letreiros pintados à mão com caligrafia bem amadora. Fiquei sabendo depois que homens falando baixinho ofereceram algumas ilegalidades a Tom e W.: Viagra, cocaína, marijuana. No, gracias. Circulamos rapidamente por algumas lojas do mercado de dois andares a poucas quadras da ponte à procura de vestidos mexicanos. Muitas cores, bordados, máscaras de luta livre, piñatas, crianças vendendo doces, pedintes...nossa América Latina em seu normal estado mas com cheiro forte de pimenta jalapeño. Paramos em vários bares bem hole in the wall (tradução literal: buraco na parede, ou em bom português, boteco fuleiro). Imediatamente cantores vinham atrás de nós, cobrando nada menos que cinco dólares por canção. Que iTunes que nada: a indústria musical deveria seguir o exemplo do México para fazer dinheiro! Mas eu quis nos dar aquele pequeno luxo e paguei um senhor de cara afilada para tocar "Las Golondrinas" no seu violino. Era lindo e ao mesmo tempo triste. Tentei me concentrar apenas na arte deste senhor, mas a verdade é que a sua cara de pobreza me desconcertava.

Um dos bares que paramos foi o Santa Helena, que não tem placa com nome do lado de fora por proibição da prefeitura e para desgosto do gerente do bar. Está cravado ali no centro de Nuevo Laredo há mais de 100 anos. Não chega a ser um botequim de quinta. Super escuro por dentro, com paredes repletas de garrafas de bebidas e retratos de Zapata, de uma loira gostosona estilo Baywatch, uma Maja e Los Tres Reyes, "los mejores cantantes de México", segundo o gerente do bar. Nas mesas, bigodudos mal encarados que não esboçavam sorriso algum. Pouquíssimas mulheres, apenas eu e mais duas. Os olhares voltados para nós, os únicos gringos, degustando as cervejas locais Tecate, Indio, Negra Modelo. Não sou cervejeira, mas como são deliciosas as cervejas mexicanas.


Nos fundos do bar, ao lado do banheiro mínimo, um altar com várias oferendas de pão, maçã e tequila para la Santa Muerte. Descobri depois que ela -- sim, a própria Morte com cara de caveira e cajado --é a padroeira dos narcotraficantes. Tom não me recomendou tirar fotos ali, mas W. explicou que eu era brasileira e imediatamente um rapaz novinho me acompanhou para tirar fotos da oferenda. O gerente do bar, quando soube que eu era brasileira, acionou a radiola de ficha que começou a tocar Roberto Carlos em espanhol "Amada amante/amada amante". E a vida pulsando, exatamente como deve ser.

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Este mês de janeiro de 2010, logo após receber minha permissão para sair do país, fiz minha segunda incursão a Nuevo Laredo. Era um sábado frio de sair fumacinha da boca, diferentemente daquela primavera de derreter miolos de oito meses atrás. Cruzar a ponte era excitante, mas eu sentia o desconforto do medo. É uma coceira na boca do estômago. Eu já havia comido do fruto proibido, assistido ao noticiário local e nacional que intimida qualquer pessoa a querer passar para o outro lado. Nuevo Laredo é retratada como um sanguinolento palco de guerra onde sua vida pode ir embora na primeira esquina. Desta vez éramos apenas eu e W. e estávamos de carro. Eu consigo me mesclar bem com a população local, mas W., com sua pela muito branca, seu cabelo loiro e seus olhos verdes é o gringo no seu mais comum estereótipo. Eu amava estar novamente em solo mexicano, mas uma eu medrosa queria que as horas passassem rapidamente para que eu já estivesse de volta na "segurança" da minha casa texana. Eu queria ser um pouco mais ignorante naquela ocasião.

Voltamos ao mercado. Nada de calefação nas lojas. Minhas mãos e pés congelavam. Compramos alguns vestidos e objetos de decoração: uns lustres em forma de estrela e lindos bichinhos de madeira de Oaxaca para o apartamento novo. Paguei 30 centavos de dólar para fazer xixi. Um senhor fazia montinhos de papel higiênico e recolhia o dinheiro. O banheiro era limpinho. Na América Latina é possível fazer dinheiro com o gerenciamento de banheiros. Minha mente sob o efeito do medo imaginava que um tiroteio começaria naquele mercado a qualquer minuto, eu e W. nos escondendo atrás dos vestidos, pânico generalizado. Mas não havia vestígios de nada daquilo. Apenas uma calma reinante, vendedores cordiais, nem mesmo um pedinte sequer.

Nas ruas as barraquinhas de mariscos anunciavam sopa de polvo. Já fui mais corajosa: dispensei. W. me levou para almoçar no El Rincón de Veracruz, um restaurante pequenininho e super simples mais para dentro da cidade. Como lembrava Juazeiro da Bahia aquela Nuevo Laredo de ruas apertadas. A comida do Rincón era deliciosa. Pedi umas tortillas de milho macias cobertas com creme de feijão, linguiça defumada picadinha e queijo fresco. E claro, um creme de pimenta verde por cima para esquentar o corpo naquele dia frio. Sou devota do gosto confortante das tortillas de milho. W. estava inseguro em deixar o carro longe da nossa vista. Eu também. Mas dentro do restaurante só chegavam famílias e crianças. De perturbadas ali, apenas as nossas mentes americanizadas.

Aguardamos mais de uma hora na fila da ponte para entrar no Texas. Ao meu lado, uma gigantesca bandeira mexicana flemulava com sua águia segurando uma serpente pelo bico. Espero ter esta destreza para enfrentar minhas paranóias e pensamentos peçonhentos. Não sei quando retornarei àquele país, mas tomara que não tarde. Há sempre um fôlego renovado que emerge daquela terra que tempera meu juízo.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Garage sale


Neste instante minha casa é um mercado de pulgas em final de feira. A escuridão ainda esconde a alvorada mas chegam dezenas de compradores para levar aquilo que já foi útil ou apreciado um dia. Tenho virado expert em bazares, ou garage sales como são conhecidos por estas bandas. Algum sangue de comerciante turco deve correr nas minhas veias. Alguma cigana negociadora fugindo da inquisição em séculos distantes. O passado do meu marido indo embora a 70% de desconto. Seus quadros comprados na lua-de-mel com a primeira esposa. A faca que cortou o bolo do seu primeiro casamento hoje valeu 25 centavos de dólar. Mesa e cadeiras que servirão outras refeições, panelas que cozinharão outros temperos. A sala de jantar agora emana eco. A casa esvaziada. Um regozijo misturado com culpa dentro do meu coração e da minha carteira. Somos tão Madalenas nós mulheres. Mini-infartos em meu peito mais por ver seu passado indo parar em mãos alheias do que por ciúmes necessariamente. Me dou conta que ainda que meu marido tenha voluntariamente separado objetos para venda, a mesma não teria ocorrido não fosse por mim. Não fosse por nós. Não fosse pelos novos planos. Há sete meses também vendi meu passado em nome da nossa causa. Mas não adianta: frito ovos mexidos com linguiça defumada e lhe sirvo com voz doce sobre torradas como parte da minha sentença de réu culpada.

Quando nos casamos e me mudei para sua casa me perguntava se um dia conseguiria me livrar dos objetos que eu não gostava. Quase todos. Minha mãe, do alto da sabedoria das suas quatro décadas de casamento, me ensinava a ter cuidado. "Estas coisas são delicadas, minha filha." Porém me perturbavam os móveis antiquados com pés de leão, os arranjos de plantas artificiais, os quadros onde concordávamos apenas com o colorido das cores. Com os meses aprendi a ignorar os objetos que me doíam a vista. Percebi que a estratégia era não confrontar o gosto do meu marido. Aos poucos fui mostrando outros estilos, outros projetos. Sempre que havia uma chance eu fazia questão de entrar numa loja de móveis, mostrar outros conceitos de arte nas galerias que visitamos. Percebi que concordávamos em quase tudo e não em quase nada. Cabia apenas a mim conduzir a situação e trazer outros olhares. A chave era delicadeza. Cabia a mim saber ser mais esposa. A velha cigana negociadora abrindo fronteiras.

Há três grupos de compradores nas garage sales. Aqueles que têm condições de comprar coisas novas mas estão à procura de uma boa oferta, os que compram para revender e os que compram objetos de segunda-mão por total necessidade. Nesta cidade o segundo e terceiro grupo são maioria. Há profissionais de garage sale que acordam às 4h da manhã atrás de objetos que podem depois ser revendidos no México por três vezes o preço da compra. E há aqueles em busca de migalhas que lhes garantam um mínimo de dignidade, como a menina de uns 12 anos e olhar desesperado que me perguntava se eu tinha algum resto de perfume para lhe vender. Por que não lembrei de lhe dar o resto daquela fragrância que raramente uso? Eu poderia ter lhe dado, menininha. De graça. Jamais lhe venderia um resto de glamour. Qualquer coisa para diminuir a inquietude das suas pupilas. Não entendo porque minha compaixão só apareceu quando você partiu.

Aprendi a exercitar o desapego a objetos neste país, mais precisamente no ano 2000. Meu apartamento incendiou e perdi quase tudo. Entre as cinzas, com leves chamuscadas mas praticamente intactos, estavam as fotos e diários dos quatro anos anteriores que eu havia vivido aqui. Percebi que no fim das contas as memórias são tudo o que levamos da vida. E eu não queria perder as memórias exatamente da forma em que foram vivenciadas. O tempo nos modifica, mas retém as palavras. Palavras são imortais quando registradas e até mais reais que as fotografias. Por vezes não me reconheço em antigos cadernos redigidos a mão. Fotos, por outro lado, quase sempre carregam a superficialidade da nossa vaidade. Sorrimos mesmo quando a dor é dilacerante. Mas as fotografias não deixam de ser um mergulho no passado, uma lembrança de quem fomos, uma saudade de quem pretendíamos ser. Uma bola de cristal ao avesso.

Muito já foi falado sobre a alma dos objetos. Objetos que carregam a energia dos seus donos. Quando fiz um bazar para deixar o Brasil antes de me casar, algumas pessoas me confidenciaram que nunca compravam objetos de segunda-mão, mas que abririam exceção para os meus porque eu emanava energia positiva. Verdade. A felicidade em vendê-los era maior do que a dor de perdê-los. Algo muito especial estava em jogo na minha vida. Caso fosse por necessidade grave, como problemas financeiros ou de saúde, um pouco da minha dor iria junto na transação.

O dia raiou e o pouco que sobrou será doado. Um balde de silicone, um contador de moedas, uma guirlanda outonal, duas camisas surradas, um par de muletas. Já fechamos as portas, já contamos o apurado. Há o suficiente para pagar o caminhão da mudança. Os objetos já circulam por aí com seus novos donos, outros aguardam adoção. Há o projeto de um apartamento na cidade nova com decoração a quatro mãos. Há o prelúdio de uma casa que se parecerá mais com nós do que apenas com ele. Em breve chegará a nossa vez de varar a alvorada atrás de boas barganhas. Há um certo charme nesta busca quando integramos a categoria dos não-necessitados. Pago um bom preço por objetos com almas leves e passados passado a limpo.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Tábula rasa


O ano novo chegou há uma semana, mas aquela sensação de poder recomeçar ainda persiste. Acredito que a palavra que mais expressa o significado de um novo ano é esperança. Esperamos colocar em prática os planos, esperamos não mais procrastinar, esperamos nos dar primeiras e segundas chances. Ainda que nada mude de fato -- apenas uma folhinha nova no calendário -- o que seria de nós sem a contagem do tempo, sem o tiquetaquear do relógio, sem a noção exata de que há 365 dias, às vezes 366? E se um ano tivesse 1000 dias, ou se o dia fosse a contagem de três sóis e três luas, postergaríamos menos os nossos planos?

Fiz os meus para 2010, não sem antes examinar os que havia listado para 2009. Sim, listados em bullet points no meu Moleskine e consultados ao longo dos meses do que ano que se foi. Pode parecer psicótico, mas ajuda a manter a mente em perspectiva. Mas atenção: faz-se extremamente necessário saber adaptar-se à realidade e às mudanças inesperadas que a vida nos traz. Na minha lista havia o plano de ganhar pelo menos R$ 1000 a mais de salário mensal e batalhar uma promoção para ser transferida para a Europa. Ainda arrasada com o final de um relacionamento super problemático, não havia nada sobre encontrar um cara legal. Até porque é o tipo da coisa que não se encontra em prateleira de supermercado, mas pelo menos dá para tentar fugir dos padrões passados que sempre acabam em encrenca. Já no primeiro semestre acabei reencontrando um grande amigo que eu não via há uma década, me apaixonando, aceitando me casar com ele e me mudando para os Estados Unidos onde fiquei sem emprego durante todo o segundo semestre aguardando a autorização para trabalhar. E só fiz gastar dinheiro (investir numa mudança de vida talvez seja a colocação mais exata para aliviar qualquer sinal de culpa). Também havia indicado que queria ficar 100% fluente em francês. Acabei vindo parar na fronteira com o México, onde desenferrujei o espanhol e acabei falando este idioma quase tanto quanto o inglês. Consegui fazer massagens semanalmente e ler um livro a cada dois meses somente enquanto morava no Brasil, não fui a sessões de Reiki, não comecei o roteiro de um argumento de filme que eu havia criado em 2008, nem assisti a todos os filmes clássicos que sempre quis assistir na vida mas sempre tive preguiça. Por outro lado, os planos listados no caderninho que se tornaram reais incluem ter voltado a fazer esporte no mínimo três vezes por semana, ter tomado classes de violão e me recuperado totalmente da cirurgia da coluna realizada em janeiro de 2008. Desde o último outubro, após beber por três dias consecutivos um potente chá de sucupira com sementes contrabandeadas receitado por meu pai, me casar, deixar passar o embaralhamento de sensações quando se faz uma mudança radical de vida, entender porque eu ficava sempre tão ansiosa no trabalho e ter tempo para relaxar, não senti mais dor nenhuma. Até o meu pé direito, que ainda apresentava uma quase imperceptível paralisia, está curado. Em paralelo à construção da lista do ano que acabou de entrar, também fiz a lista dos agradecimentos ao ano que passou. É calmante, cicatrizante e confortante poder compreender as bênçãos que nos chegam e agradecer às forças além desta vida que nos protegem e encorajam.

Para 2010, diminuí bastante os objetivos, visando manter o foco e minimizar minha ansiedade. Reescrevi alguns planos não concretizados em 2009 e adicionei novos, como fazer voluntariado. Acredito que tenha listado metas alcancáveis, mas novamente aguardo as surpresas do caminho. É bem provável que "o inesperado faça uma surpresa" como diz a canção de velhos festivais. Mas sou daquelas que leu Paulo Coelho aos 16 anos e, por mais que hoje eu não tenha a menor paciência para abraçar sua obra, retive a mensagem New Age (New Piegas?) de que "quando você realmente quer algo, o universo conspira ao seu favor".

O reveillon 2009/2010 foi o mais calmo dos últimos tempos. Este ano não teve banho de ervas de descarrego do pescoço pra baixo nem banho de ervas para abrir os caminhos. E olha que fui atrás: rodei Laredo por umas duas horas procurando uma hierbaria, ou casa que vende ervas e artigos religiosos, e quando finalmente a encontrei não tive coragem de entrar. Era um barraco caindo aos pedaços numa área gueto da cidade. Liguei para o número indicado na placa e uma senhora falando em espanhol com voz de bruxa de cara verde e pinta na ponta do nariz atendeu. Amarelei. Então me dei conta que quando em Roma, faça como os romanos, ou adapte-se com o que tiver ao seu alcance. Não houve festão porque deu preguiça de sair de casa, mas houve a incorporação estilizada de alguns rituais: da sacada do apartamento dos meus primos em Houston, que estavam de férias no Brasil, eu e meu marido brindamos o ano usando roupões que encontramos no banheiro de hóspedes e quebraram o galho quanto ao quesito roupa branca. Eu até havia comprado uma calcinha verde para chamar dinheiro, mas a esqueci em Laredo. Usei uma calcinha multicolor não-virgem. Bateu um medinho, confesso; é difícil se libertar de algumas tradições. À meia-noite apenas nosso pé direito tocava o chão. O champanhe congelou e eu jamais faria idéia que espumante virava gelo. Medinho voltou. Ficamos no vinho tinto de rótulo Mènage à Trois. Só rindo mesmo. Em vez do banquete, um prato de queijos, hummus e salame -- afinal, o porco fuça pra frente e não cisca pra trás, e este ano o slogan é "em frente e avante". Vi as últimas luzes do ano no hemisfério norte. Uma brisa fria soprava na cidade. Ao longe, fogos de artifício em alguma casa animada.

Amanheceu 2010 e o ano já começou cheio de recomeços: no dia 02 achamos um apartamento para alugar em Houston, para onde nos mudamos no final deste mês. Estilo loft, charmoso, numa área gostosa da cidade. No dia 04 uma carta da Imigração indicava que já estou autorizada a entrar e sair do país (México, melhor preparar uma piscina de margaritas para me receber!). No natal eu já havia recebido um presentão da Imigração: um e-mail indicando que minha permissão para trabalhar foi autorizada e que eu deveria recebê-la até o final do mês. Ontem chegou a dita cuja, recepcionada por cinco minutos de puros berros de alegria e empolgação. Engraçado que logo em seguida a trilha sonora foi "lerê lerê, lererê lererê". A vida de dona de casa em tempo integral em breve acabará. Os currículos estão aos poucos sendo enviados. Uma outra etapa se inicia, seguida de um inerente frio na barriga. A vontade é de mudar completamente de carreira (e por que não recomeçar MESMO?), mas estou optando pelo caminho mais fácil, que é trabalhar na minha área. Os salários são descentes e neste momento dinheiro é meu plano de curto prazo: dinheiro para decorar a casa nova, comprar roupas, supérfluos necessários e viajar. Deixar o marido focar nos empréstimos dele adquiridos antes do nosso casamento para em até um ano podermos respirar tranquilamente.

Os planos estão na trilha certa, a vida está se ajeitando. Vez por outra bate uma insegurança, um receio de um inesperado de natureza negativa chegar e acabar com a festa. Mas xô, xô. Faço banhos mentais de descarrego. Tique-taque, tique-taque e já é Dia de Reis. As casas começam a retirar a decoração natalina. Qualquer vestígio de 2009 já ficou para trás. Em frente e avante.