quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Vestido de noiva

Por mais independente, bem resolvida e despojada que seja uma mulher; por mais descolada, mais pra frente e mais "muderna" que seja uma mulher; por mais mulherão, mais furacão, mais "tô nem aí" pras instituições que seja uma mulher, no fundo do seu coraçãozinho pulsante ela carrega uma criatura que só usa vestido cor-de-rosa e suspira com pestanas apaixonadas. Esta sósia ao avesso se chama mulherzinha. Uma mulherzinha que sonha com o príncipe encantado na hora de dormir, mesmo que sua plena e intensa vida amorosa a tenha feito compreender que assim como dentro de toda mulher existe uma mulherzinha, dentro de todo homem existe um sapo, muitas vezes um baita dum cururu grande, verde e bizarro. Esta mesma mulherão-mulherzinha que descobriu a intrínseca relação entre humanos e anfíbios (no caso feminino, a perereca é o elo perdido) sonha, desde os tempos de menininha, com aquele dia, o grande dia, o supostamente maior dia da sua existência: aquele em que ela olha nos olhos do seu príncipe-sapo e, explodindo de emoção, diz "sim, serei sua para o resto de nossas vidas." Mas antes de chegar nestes finalmentes, teve um outro detalhe que ela não deixou passar desapercebido: o vestido de noiva. Eis aqui um breve relato do meu momento mulherzinha.

Foi sábado passado e fazia um dia lindo, quente e úmido. Numa cidade onde não há nada culturalmente interessante para se fazer, o que se faz? Vai às compras. Saí de casa para uma breve sessão de tortura, sabendo que eu não poderia gastar: apenas para olhar, fazendo as vezes de consumidora inteligente que dificilmente sei ser. Perambulando pelas lojas do shopping, pelos infinitos balcões de maquiagem e prateleiras de sapatos, me dei conta que me casaria dali a menos de um mês. Já estava quase conformada com o formato burocrático do que seria a minha boda: uma visita ao cartório local, uma troca de votos de cinco minutos e que vivam felizes para sempre. A minha mulherzinha já estava morrendo sufocada de tédio com falta de gliter na veia. Parei para um café e a cafeína teve um efeito ressucitador: "não me assassine. Procure um vestido. Um vestido de noiva."

Flasback. Lá nos idos dos anos 80 eu, pirralha, olhava revistas de noivas e procurava pelo modelo ideal. Era uma época de mangas bufantes, horrendas, noivas à la merengue de limão. Achei um tomara-que-caia perdido entre as páginas e fiz ali minha escolha. Vi pela primeira vez que havia vestidos que não eram brancos, mas perolados. Gostei, mas a minha mulherzinha-tradição dizia que para casar, só se fosse de branco. Mesmo que fizessem troça com o fato de casar de branco. Cresci numa terra machista, onde virgindade ainda era trunfo, onde homens e mulheres iam aos casamentos e cochichavam maliciosamente que aquela noiva nunca deveria ter se casado de branco. Ainda: fui criada por uma mãe moderna que dizia que vestido de noiva era algo cafona, coisa de festa a fantasia. Cresci com amigas bem mulherzinhas, mas também com amigas modernas que abafaram suas mulherzinhas e abraçaram a máxima que vestido de noiva é brega. E finalmente: nunca entendi por que minha mãe comprava aquelas revistas, afinal ela não apenas achava vestido de noiva coisa cafona, como também já estava casada há tanto tempo. Minha mãe que casou no cartório de botas de cano alto, saia plissada xadrez, blusa de manga comprida e lenço de seda na cabeça. Quando pequena achava um horror, mas hoje acho o máximo. Mas foi preciso chegar o momento de eu comprar o meu vestido para me dar conta que, como ela não se casou dentro de um, sua mulherzinha certamente aparecia como noiva-fantasma e pedia oferendas em formas de revistas.

Comecei a entrar de loja em loja procurando um vestido branco. Um vestido branco, curto e moderno. Um vestido que eu pudesse usar depois, que não tivesse cara de festa a fantasia. Um vestido sóbrio porém sexy. Até pouco tempo atrás um editorial da Marie Claire dizia que branco era o novo preto. Mas certamente esta moda não chegou aqui na fronteira, muito menos nesta entrada de outono repleto de cores escuras. Até achei um perdido numa arara nos fundos de uma loja, mas o tecido era ruim, o corte era ruim, tudo era ruim e eu mal conseguia respirar de tão apertado. Comecei a mudar de idéia e a achar que meu vestido de noiva seria vermelho. Por que não? Minha mulherzinha-libertina começava a dar pulos, golpeando a mulherzinha-tradição.

Flashback. Sou de uma cultura obsecada por casamento, por tradições rígidas para certos ritos de passagem e, consequentemente, pelos vestidos que fazem parte destas tradições. Eu não tive festa de quinze anos. Nem baile de debutantes. Minha mãe achava cafona. Minhas amigas mais próximas achavam cafona. Eu também achava cafona, mas minha mulherzinha-tradição pestanejava apaixonadamente em segredo com aqueles vestidos de princesa. As aniversariantes e debutantes trocavam até três vezes de roupa na mesma festa. Nos meus quinze anos fui comer pizza trajando um conjuntinho de malha roxo colado no corpo. Nunca vou me esquecer daquele vestidinho. Não porque eu fosse louca por ele, mas porque no fundo ele foi o substituto do vestido branco que eu nunca tive.

Circulei o shopping inteiro. Havia uma última loja, uma enorme loja de departamento para entrar. Resolvi ir embora. Porém, a alguns passos dali, o resto da cafeína que ainda circulava no sangue me mandou dar meia volta volver. Um sexto sentido em ação. E eis que no lado esquerdo da escada rolante do segundo andar da Dillard's, eu o encontrei. Ele. O vestido. Tecido maravilhoso, corte impecável. Simples, elegante, sexy e jovial. De marca, BCBG Max Azria, a um preço excelente, "com 20% de desconto somente até amanhã se você preencher esta ficha cadastral." E ainda havia um modelo no meu número.

Enquanto o atendente foi buscá-lo, lembrei de um programa na TV que mostrava noivas comprando seus vestidos. Noivas felizes, nervosas e ansiosas com champanhe na mão escolhendo o vestido que usariam uma única vez nas suas vidas. Lembrei de todos os filmes e séries de televisão com cenas de noivas escolhendo seus vestidos. E senti uma vontade enorme de poder compartilhar aquele momento com as minhas amigas, com a minha irmã, com a minha mãe. Contudo, não deixei a melancolia me dominar. Lembrei também que praticamente durante toda a minha vida adulta, estive sozinha enquanto fiz minhas compras de roupas. O atendente chegou. Experimentei o vestido. Ele fechou o zíper nas costas. Ele era gay e fiquei feliz por isto. O caimento ficou perfeito -- verdade, um tantinho de nada apertado no peito, mas não visivelmente apertado. Ele era meu, eu sabia. O vestido de matalassê acetinado de cor perolada com flores aplicadas no busto e laço preto na cintura. Curto. Super curto. Nada de superstições com cores, nada de puritanismo, por favor. Minha mulherzinha-moderna estava embriagada de felicidade. Liguei para o noivo: "honey, achei." "Hum, que bom. Quanto?" "US$ X". "OK. Pode vir aqui em casa buscar o cartão". Minha mulherzinha-tradição quis que o noivo pagasse pelo mimo. E a mulher dona-de-casa que já compreende os hábitos de compra do seu futuro marido se surpreendeu com o fato de ele não ter hesitado nem por um momento sequer.

Pedi ao atendente para separar o vestido, enfatizando a cada três palavras que era o meu vestido de casamento. Meu-vestido-de-casamento-OK? O simpático atendente disse que eu não precisava me preocupar. Saí do shopping flutuando. No carro, a caminho de casa, ou melhor, a caminho de buscar o cartão de crédito, liguei o som a toda altura e cantei cada música com toda a força dos meus pulmões durante os 15 minutos de viagem. "Minha pequena Eva, Eeeeeeva, o nosso amor na última astronave, Eeeeva (...)", "E pra vocês eu deixo apenas o meu olhar 43, aquele assim (...)". Eu estava histérica e mesmo que aquelas letras não fizessem qualquer sentido, aquela foi a trilha sonora da minha radiante felicidade.

No fundo, eu sabia que não era apenas o vestido. Era ele também, mas não ele somente. Era o rito de passagem. A evolução rumo a esta etapa que eu nunca achei de fato que fosse o maior dia na vida de uma mulher, e até duvidei se fosse acontecer um dia comigo. Havia tanta coisa para se fazer nesta vida; casamento era apenas uma consequência, um acaso ou mais uma possibilidade. Continuo achando. Mas minha mulherzinha anda bem sorridente estes dias. Ainda: a partir do vestido, decidi mudar radicalmente o formato de casamento em cartório. Não à burocracia, sim ao gliter! Mas esta história eu deixarei para depois.

Momentos mais tarde, já chegando em casa com o vestido em mãos, pedi para W fechar os olhos enquanto eu escondia o mimo no closet. Minha mulherzinha-mulherzinha se deixou levar por superstição: nada do noivo ver o vestido até o dia do casamento. Eu estava feliz. W estava feliz. Ele sabe que tem certas coisas que não se deve nunca negar a uma mulher. Meu sábio príncipe-sapo.

sábado, 19 de setembro de 2009

Zunhe-me

Ela tinha as maiores unhas que qualquer mulher dona de casa jamais ousou ter na vida. Unhas gordas e longas. Garras superlativas. Esmalte cor-de-abóbora com cristais na ponta, nenhuma lasca, nenhuma cutícula por fazer, nenhuma sujeira por baixo. Apenas o abóbora reluzindo naquele final de tarde, numa cidade que cheirava a pó quando a chuva chegava. E chovia. Era baixinha. Era larga. Tinha cabelos negros grossos e mal-cuidados. O zelo estava depositado naquelas unhas, naqueles cristais, naquelas pontas quadradas duras como cimento. Quantas manicures vietnamitas por semana? A chuva. Um homem sai do carro. Caminha rápido para não se molhar em direção à mulher de unhas fenomenais. Ele é magro. Ele é franzino. Ela ocupa duas vezes o espaço do seu corpo. Ela sorri com seus olhos pequenos borrados sobrecarregados de sombra, lápis, delineador e rímel. Com o braço esquerdo ele enlaça sua cintura. Ela repousa as intermináveis unhas sobre o seu quadril. Para ele o mundo pode acabar ali. Seu mundo por uma zunhada cor-de-abóbora.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Independência, vencedores e vencidos

Em 16 de setembro o México comemorou seu 199o. aniversário de independência do domínio espanhol. É interessante observar como os mexicanos, pelo menos neste aspecto, são bem mais patrióticos que nós brasileiros. Quando eu era criança lá nas brenhas do sertão, eu marchava com a farda de gala do colégio pelas ruas da cidade, seguindo a marchinha da escola e a banda do batalhão militar. Depois disto, 07 de setembro tornou-se apenas mais um feriado para acordar tarde e descansar. Já no México, as fiestas pátrias são coisa séria. Os mexicanos enfeitam as ruas de vermelho, verde e branco, as cores do país, fazem comidas típicas para esta celebração e reunem-se para festas em casas de familiares e amigos. É um patriotismo que vai além dos desfiles militares que estamos acostumados no Brasil. Há um sentimento civil de patriotismo acima de tudo. Tive a chance de ver isto de perto durante uma viagem à Cidade do México há cerca de quatro anos. Aquela noite no distrito boêmio de Coyoacán, pertinho da casa de Frida Khalo e Diego Rivera, foi uma das mais inesquecíveis que já vivi. Não teve nenhum grande romance, nenhuma grande aventura hollywoodiana. Apenas uma brasileira de coração aberto comendo cactus com tubarão na varanda de um restaurante de culinária fusión moderninha, brindando com um cara que eu havia conhecido durante o vôo Rio-Cidade do México e que virou meu companheiro de viagem durante aquela semana. Fogos de artifício, barraquinhas de comidas típicas e super exóticas por todos os lados, dança, pimenta e leveza no ar eram o pano de fundo perfeito. Também observei semelhante comemoração no Chile há dois anos, por coincidência também em setembro, indo a suas fondas regadas a churrasco, empanadas, cerveja e vinhos, tanto em grandes espaços urbanos quanto nas casas de amigos. Deliciosa experiência, mas que me perdoem os chilenos patriotas: eles não chegam perto do tempero que o México tem. Deve ser o chilli azteca.

Laredo, Texas, tentou colocar tempero na sua festinha, mas a coisa ainda assim ficou meio morna, faltando faísca. De toda forma, foi prazeiroso ver aquela gente toda reunida no mormaço noturno na Plaza San Agustín, no centro histórico da cidade, celebrando sua herança histórica e cultural. A comemoração ocorreu um dia antes da celebração oficial. O motivo é simples: com Nuevo Laredo, México, a apenas um cruzar de rio, uma festa no dia 16 de setembro ficaria praticamente vazia.

A noite teve direito a danças típicas, geralmente belas moças sendo cortejadas por rapazes, tudo num estilo meio inocente e campestre; desfile de "rainhas" dos estados mexicanos (como eles adoram isto! Tem rainha pra tudo, igualzinho ao Brasil. Olha que eu já fui rainha do milho no século passado!);cantores com nomes como Danilo Daniel; grupos de mariachis; banda do batalhão de Nuevo Laredo; barraquinhas de tacos e jamaicas, um suco à base de hibisco. E belas pequenas cenas, como a menininha flamulando a bandeira mexicana duas vezes maior do que ela. Algumas mulheres e crianças vestiam roupas típicas, como aquelas belas batas de bordados coloridos que eu uso constantemente para ficar em casa. Havia um vendedor de bandeiras com a metade do rosto tapado por uma delas. Membros da Igreja Cristã Misericórdia aproveitando a aglomeração para entregar panfletos de "El infierno: la decisión es tuya". Um organizador de eventos distribuindo os panfletos do show da cantora pop Paulina Rubio com suas pernocas à mostra. Um padre tomando Coca-Cola em frente ao coreto.

Em meio a tanta informação, na minha cabeça ecoava o comentário que minha mãe fez outro dia quando falávamos sobre os vencedores e os vencidos da guerra entre Estados Unidos e México em meados do século XIX. Sim, os EUA venceram militarmente, levando o México a se render e a entregar alguns dos seus territórios, incluíndo o Texas. Mas e o legado cultural deixado pelos "vencidos?" A influência mexicana é muito forte na culinária, nas artes, na cultura, no idioma. Se olharmos por este aspecto, quem de fato é o grande vencedor? Senti uma certa ironia com aquela bem-vinda celebração da história mexicana em solo americano. E, em coro com o cônsul-geral do México que ostentava a bandeira de seu país na sacada do Hotel La Posada, logo após cantarem o hino nacional, também gritei: "Viva México!"




segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Éramos três na estrada


Eram três pessoas na estrada, três pessoas felizes na estrada, um homem compenetrado que conduzia e duas mulheres que sorriam na estrada e falavam da estrada e da cor do mato, e do verde do mato, e daquele céu de tantas nuvens, e da forma que as nuvens tomavam na estrada, tanta metamorfose de nuvens na estrada, um pássaro que ela viu eu também vi, e virou um avião e virou um míssil, como assim mudamos de pássaro para míssil? mas podemos também, um dia somos livres, outro dia detonamos bombas suicidas, mas ali na estrada não havia suicídio, havia três pessoas, três pessoas felizes na estrada, um homem que pegava na mão da sua mulher e duas mulheres que sorriam sem parar e brincavam com a luz, com aquele banho de sol dourado no final da tarde, mulheres que sorriam ao se fotografar, que bela e inocente brincadeira narcisista para não perder aquela luz que vinha daquele buraco no céu, e do oeste a noite descia seu manto preto-carvão e lá no leste a luz explodia alaranjada, aquele céu que a apenas oito metros era um céu de dilúvio, vimos um pedaço de fim de mundo ali na estrada, não enxergávamos um palmo à nossa frente, e chovia grosso, e chovia muito, e chovia uma nuvem negra sobre nossas cabeças, mas estávamos na nossa arca, protegidos por gargalhadas e por um arco-íris que se formou lá atrás no norte, porque embarcávamos rumo ao sul, mas sul e norte são tão relativos e para que tanta bússola nesta vida se de repente a vida chega num só fôlego, porque o fôlego foi nossa primeira voz, a minha, a dele, a dela e a sua, e é assim mesmo nesta vida, às vezes tudo chega num só fôlego, um fôlego que dura uma risada, uma risada que dura uma estrada e afe, eu prefiro viver assim, num fôlego interminável, no meio de uma estrada que chove, no meio de uma estrada que ilumina, do meio de uma gente que se metamorfoseia no melhor que consegue ser.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

As ruas fictícias de Laredo

Meu pai conhecia Laredo muito antes da minha chegada a estas terras. Não que tenha colocado os pés aqui antes, mas leitor voraz das aventuras em quadrinhos de Tex Willer, o herói fazendeiro americano que personifica as aventuras do velho oeste, já conhecia de forma romantizada os entornos desta região. Conforme o princípio da sincronicidade ("as coisas dão certo quando têm que dar"; ou, idem à lei de Murphy, "quando é pra dar merda espere uma diarréia"), às vésperas da minha mudança para esta cidade ele quis mostrar ao seu futuro genro o seu fascínio por este universo eternizado em gibis e filmes de bang-bang. Pausa para um suspiro globalizado: meu pai baiano, na sua cidade pernambucana, mostrava ao seu genro americano um gibi italiano traduzido para o português sobre uma aventura que se passava na fronteira texano-mexicana. Ao acaso, retirou da estante um dos exemplares da sua vasta coleção e eis que na primeira página da reedição de "Missão Suicida," publicada pela primeira vez em 1979, estavam Laredo e Nuevo Laredo às margens do Rio Grande num mapa simplificado do sul do Texas. Como não sorrir com estes pequenos sinais (de que nada é por acaso, de que há um plano maior para nossas comuns vidas etc etc etc) que ornamentam minha por vezes cética mente? Lembro que naquele exato momento, mesmo sendo um pontinho preto num canto esquerdo de uma página de quadrinhos, Laredo não apenas parecia menos remota, como também ganhava uma certa grandiosidade.

Poucas semanas mais tarde já nas bandas do norte, numa noite boêmia regada a vinho, W me surpreende tocando no computador pelo menos cinco versões de uma linda canção, algumas nas vozes de ninguém menos que Johnny Cash e Joan Baez. Bela e triste, é a balada de um jovem cowboy em seu leito de morte após haver sido baleado no peito. A cera dos meus ouvidos derreteu imediatamente ao saber o título: The streets of Laredo, ou "As Ruas de Laredo". Em pesquisas posteriores, descubro que ela tem origens no século XVIII e portanto várias versões, não sendo atribuída a nenhum autor específico. Num contexto mais pop também fez parte da trilha sonora do filme O segredo de Brokeback Mountain. Perdoem minha ignorância, mas acreditava até então jamais haver escutado esta música. E Laredo, perdoe minha arrogância, mas também não fazia idéia do seu prestígio. No final deste post encontra-se a letra com uma tradução que acabei de improvisar.



Mais uma pesquisa e descubro que existe um filme de 1949 também entitulado The streets of Laredo. A estória se passa no Texas em 1878 e narra as aventuras dos amigos de infância Jim, Lorn, Wahoo e Rannie. Jim vira fora-da-lei, Lorn e Wahoo viram Texas Rangers e Rannie precisa escolher entre o amor de Lorn e Jim. Para completar o meu total arreganhamento de mandíbulas, entre 1967 e 1969, a rede de TV americana NBC exibiu um seriado chamado Laredo. Misturando humor e ação, também tinha os Texas Rangers como protagonistas.



Então Laredo não é tão esquecida. Ou melhor: Laredo é de fato uma cidade lembrada, musa inspiradora -- ou pelo menos assim foi até o final da década de 1960. Existe um nicho que a reconhece, nem que seja através da sua forma fictícia e romantizada: seus cowboys, seus ranchos, seus cactus, seus cavalos. Tudo isto ainda vivo na realidade além-vídeo, tudo isto também já modernizado e transformado: cavalos brancos por todos lados em formas de grandes pickups 4x4; um cowboy paraplégico de chapéu, bota e cinturão na sua cadeira de rodas motorizada escolhendo cereal no corredor do supermercado. Eu ainda não vi, mas minha mãe disse que domingo pela manhã bem na frente da minha casa havia um cowboy montado num grande cavalo.

Existe uma Laredo viva na mente de aficcionados por faroeste que habitam o sertão pernambucano ou remotas colinas de vilas italianas. Existe uma Laredo eternizada numa bela canção de conteúdo agonizante, em clipes de You Tube, nos bites e baites de uma Internet que tudo armazena e tudo expõe. Existe uma Laredo cuja fama atravessa gerações. Existe, neste ano de 2009, a minha tentativa de conhecer esta cidade, mas entendo que minha vaidade a aceita, quase sempre, apenas como pano de fundo para meu auto-conhecimento.

The Streets of Laredo
Versão Johnny Cash

As I walked out on the streets of Laredo.
(Enquanto eu caminhava pelas ruas de Laredo)
As I walked out on Laredo one day,
(Enquanto eu caminhava por Laredo um dia)
I spied a poor cowboy wrapped in white linen,
(Eu espiei um pobre cowboy envolto em linho branco)
Wrapped in white linen as cold as the clay.
(Envolto em linho branco tão frio quanto a argila)

"I can see by your outfit that you are a cowboy."
(Eu posso ver pela sua vestimenta que você é um cowboy)
These words he did say as I boldly walked by.
(Estas foram as palavras que ele disse enquanto eu vigorosamente passei ao seu lado)
"Come an' sit down beside me an' hear my sad story.
(Venha e sente-se ao meu lado e escute minha triste história)
"I'm shot in the breast an' I know I must die."
(Fui baleado no peito e sei que devo morrer)

"It was once in the saddle, I used to go dashing.
(Uma vez sobre a sela eu costumava seguir impetuoso)
"Once in the saddle, I used to go gay.
(Uma vez sobre a sela eu costumava me animar)
"First to the card-house and then down to Rose's.
(Primeiramente no jogo e depois na casa de Rose)
"But I'm shot in the breast and I'm dying today."
(Mas estou baleado no peito e estou morrendo hoje)

"Get six jolly cowboys to carry my coffin.
(Traga seis animados cowboys para carregarem meu caixão)
"Six dance-hall maidens to bear up my pall.
(Seis dançarinas de salão para colocarem minha mortalha)
"Throw bunches of roses all over my coffin.
(Joguem muitas rosas sobre meu caixão)
"Roses to deaden the clods as they fall."
(Rosas para amortecer a terra enquanto ela cai)

"Then beat the drum slowly, play the Fife lowly.
(Então batam o tambor lentamente, toquem o pífano bem baixo)
"Play the dead march as you carry me along.
(Toquem a marcha fúnebre enquanto vocês me carregam)
"Take me to the green valley, lay the sod o'er me,
(Levem-me para o vale verde e joguem a terra sobre mim)
"I'm a young cowboy and I know I've done wrong."
(Eu sou um jovem cowboy e sei que fiz coisas erradas)

"Then go write a letter to my grey-haired mother,
(Então escreva uma carta para minha mãe de cabelos grisalhos)
"An' tell her the cowboy that she loved has gone.
(E diga-lhe que o cowboy que ela amava partiu)
"But please not one word of the man who had killed me.
(Mas por favor nenhuma palavra sobre o homem que me matou)
"Don't mention his name and his name will pass on."
(Não mencionem o seu nome e seu nome sobreviverá)

When thus he had spoken, the hot sun was setting.
(Então quando ele terminou de falar, o sol estava se pondo)
The streets of Laredo grew cold as the clay.
(As ruas de Laredo ficaram frias como a argila)
We took the young cowboy down to the green valley,
(Levamos o jovem cowboy para o vale verde)
And there stands his marker, we made, to this day.
(E até hoje ainda está lá a sua lápide que nós fizemos)

We beat the drum slowly and played the Fife lowly,
(Nós batemos o tambor lentamente e tocamos o pífano bem baixo)
Played the dead march as we carried him along.
(E tocamos a marcha fúnebre enquanto o carregávamos)
Down in the green valley, laid the sod o'er him.
(Para o vale verde, onde jogamos terra sobre ele)
He was a young cowboy and he said he'd done wrong.
(Ele era um jovem cowboy e disse que havia feito coisas erradas)

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Caipirinha, milk shake, uma fada surrada e mais um ano que entra

Nunca fui de ficar reclusa no meu aniversário. Sempre gostei de festa, comemoração, bolo e gente por perto. Por mais que tenha passado a crer em mapa astrológico, nunca engoli esta história de inferno astral que precede o mês do nosso nascimento. Nos anos que achei que isto poderia estar ocorrendo, me dei conta que eu é quem tinha alimentado meus próprios demônios e criado alguns infernos (antes fossem inferninhos). Tenho amigos que viram ostra, amigos que choram ou que preferem sair para jantar com o mínimo possível de pessoas. Respeito. Mas 02 de setembro é meu dia e com licença, consegui mais um ano, mais uma bênção: a de estar viva e não simplesmente sobrevivendo. Eis aqui um relato de como entrei na idade de Cristo com um pau na mão dando uma surra numa fada.

Diferentemente de anos anteriores, este ano não fiz contagem regressiva de um mês de antecedência. Me dei conta que a data era dali a quatro dias e debati por 10 minutos se faria ou não uma festinha. Afinal, acabei de aportar nestas terras e estive com os novos amigos apenas duas ou três vezes. Mas foi exatamente isto que ativou meu botão de comemorar: e por que não brindar com quem me recebeu tão bem numa cidade que eu adoro poder falar mal? No fundo eu sabia que o brinde não era apenas em minha homenagem, mas à deles também. Era uma forma de agradecimento. Sem contar que desde os 16 anos de idade não celebro aniversário com minha mãe por perto. E seria meu primeiro aniversário com meu querido W. E eu queria fazer brigadeiro. E comer bolo. E tomar caipirinha. E me sentir especial sim. Porque eu gosto. E posso.

Então, desde as 24 horas que antecederam a data, dei largada para a sessão de cuidados: cabelo pintado em salão seguido de corte, manicure, pedicure, sobrancelhas depiladas. Praticamente barba, cabelo e bigode. E, na tarde do dia 02, massagem sueca num spa pelas mãos de um homem forte chamado Felipe. Presente de W.

A primeira etapa foi festa de criança, na bagunça ao lado dos filhos dos meus recém-amigos. Como você explica para uma garotinha de nove anos que ela ainda não pode tomar cachaça? Faça um milk shake de morango e diga que é "caipirinha for kids". Pronto, naquela noite nasciam futuros viciados. Do lado de fora da casa, minha mãe grita: "traga um lenço!" Chego lá e pela 1a vez na vida tem uma piñata para mim. Todinha para mim! Piñatas são um clássico da tradição mexicana: potes de papier machê em formato de tudo o que você possa imaginar - flores, carros, super heróis, Bob Sponja, cavalinho -- com doces dentro. Uma venda é colocada nos olhos de uma criança que dá umas rodadinhas para ficar tonta e tentar acertar com um bastão o boneco pendurando numa árvore. Quando ele quebra, derrama rios de doces e brinquedinhos. É o mesmo conceito do quebra-pote brasileiro, um clássico da minha infância. Então é aqui que aparece o pau: um cabo de vassoura. E é aqui que aparece a fada: minha piñata era uma Sininho do tamanho de um bebê e com cara de monstro. Surrei a bichinha com gosto. A cabeça foi parar do outro lado da rua. Botei pra fora qualquer sinal de demônio que quisesse roubar meu bom momento astral.


Abre parênteses: como é que de um ano para outro a vida pode tomar um caminho completamente distinto? Em 2008 eu comemorava meu aniversário numa champanheria carioca, cercada de amigos de longa data e de alguns amigos também recém-conhecidos, mas de perfil tão distinto dos amigos de Laredo. Eram publicitários, fotógrafos, atrizes, músicos, cineastas, designers. No Rio todo mundo é pop. Estouramos vários espumantes e ainda tive forças para emendar um cabrito com arroz de brócolis na Lapa às 2h da madrugada. Aqui, pessoas de profissão "normal", -- advogados, professora de 2o grau, instrutora de academia, jornalista -- muitos recém-saídos de reunião do Rotary Club. E eu servindo leite batido pra gurizada, dando um beijo no meu marido e abraçando minha mãe. Quero nem pensar no ano que vem. Que venha. Fecha parênteses.

A noite ainda teve direito a bolo encomendado combinando com a cor dos pratos, da toalha de mesa e dos guardanapos; brigadeiro coberto com chocolate granulado; pão de sardinha que virou minha "receita secreta" de sucesso; queijos variados, tomate cereja no azeite e hummus de caixa porque a gente também tem que ser prática de vez em quando. E eu de avental vermelho a noite inteira atrás do balcão preparando caipirinha para os convidados. Verdade, mal tive tempo de conversar com as pessoas. Servir foi o que fiz, mas com gosto, com vontade. Tome, prove um pouco da de limão que é clássica. Experimente agora a de morango. Morango com limão caiu no gosto dos laredenses. Um pouco do meu Brasil misturado com cachaça e açúcar. Um pouco de mim. Receber é bom, mas dar é tão prazeiroso quanto. E juro que esta frase não tem duplo sentido.