Sábado à noite de alma irrequieta. De uma hora para outra
esta cidade tornou-se um pêndulo, movimentos que não variam de um lado para
outro, uma constância enfadonha de bares e gentes e seres da noite e
gargalhadas e taças de vinhos e três segundos de ilusão num balcão de bar. No espaço deste ano sair na noite
transitou de uma opção da minha nova liberdade para uma espécie de ritual
proletário de final de expediente, algo que clama por batom vermelho e salto
alto, mas também por substância, mas olha só eu procurando tutano nos lugares
errados. Em balcão de bar encontra-se copo e não medula. Em pista de dança
encontra-se muito desejo e quase nada de massa encefálica. Mas, vez por outra,
encontra-se ternura na face do medo.
Naquele sábado eu usava calça jeans e um par de texanas
botas vermelhas. Não era dia de
caça. Era dia de rever um antigo casal de amigos num microscópico bar do outro
lado da cidade, o clássico houstoniano Shakespeare Pub, reduto de amantes de blues, quase todos homens e mulheres
brancos de meia-idade. O lugar é escuro, as mesas de sinuca ao fundo estão
quase sempre vazias e as doses de bourbon on
the rocks são generosamente bem servidas por simpáticas garçonetes que mal
completaram 21 anos de idade. O clima é família, quase uma aberração no meio da
cena bar. E a música – ah, a
música! Doses colossais de pura beleza, guitarras elétricas que rasgam o espaço tilitando
ondas sonoras de hipnotizar tímpanos, retina e coração.
Naquela noite o cantor parecia uma reencarnação de um Robert
Plant de 30 e poucos anos. Seus longos cachos louros desciam abaixo dos ombros.
Sua voz era viril e intensa como as botas que usava: texanas, couro de
jacaré, bico pontudo de prata. Sua guitarra tocava um som estilo Austin, Texas, um blues
salpicado com rock e country, mas assim,
um tempero bem de leve, quase como uma pitada de fleur de sel só para dar gosto. Era impossível tirar os olhos e ouvidos do mini-palco. Sua
presença enchia todo o ambiente. Sua voz derretia o gelo do meu Maker’s Mark. Até o momento em que os
holofotes voltaram-se para o meio do salão.
Usando uma blusa do Texans, o time profissional de futebol
americano de Houston, shorts curtos, tênis e meias brancas até o meio das
canelas, um senhor de cabelos branquinhos e cara enrugada roubou a cena.
Reconheço que tempos atrás eu teria sentido aquela leve vergonha por sua
pessoa, pela expressividade da sua pessoa, por sua falta de estilo – ou
melhor, pelo seu tipo de estilo. Shame on
me e na humanidade por chamar de ridículo aquilo que não nos cai bem! Mas
nestes dias em que meu coração aprendeu a sentir mais e meu senso crítico a clamar menos, eu vi naquele salão vazio
um homem que não estava nem aí para ninguém, feliz com sua dança desajeitada, seus dedinhos apontando para o teto e
suas compridas meias. E alguma coisa naquela autenticidade mexeu comigo. Mais
um gole e fui ao seu encontro. Foram uns dois minutos de blues e quadris em movimento dançando frente a frente antes da música acabar. Voltei para minha mesa.
Meus amigos romenos sorriam para mim com ares de aprovação. O senhorzinho das
meias brancas sentou-se conosco. Seus olhos eram claros, mas naquele lugar escuro
era difícil dizer se azuis, verdes ou cinzas. Eram olhos de quem viveu muitos
anos, muito além da minha vida. Com uma voz rouca, me disse “thank you, really.” E com dificuldades
na fala, proferiu sua sentença: “Acabei se ser diagnosticado com câncer de
garganta.” Explicou que aquele era o último dia em que poderia beber antes de
começar a quimioterapia. Ele tinha 71 anos, mas parecia 10 anos mais velho. Com
uma garrafa de cerveja na mão ele me olhou mais uma vez e me agradeceu por ter
feito daquela noite algo muito especial para ele, ainda que por poucos minutos
de dança num salão desabitado.
Eu não posso dizer que conheço a cara da morte, mas eu vi a
cara de quem quis fazer um brinde à vida quando ela parece correr do nosso
controle. Naquela noite, depois
daquele encontro, eu dancei sozinha no salão quando ninguém dançava, nem mesmo
o senhor de meias brancas com sua última garrafa de cerveja. Eu cantarolei as
melodias das canções que eu não sabia. Eu saí dali para botar o papo em dia com
uma amiga que não via há muito tempo. Eu falei o que me deu vontade, sem filtros, e sei que não necessariamente agradei, mas falei o que eu precisava dizer. Naquela noite eu fui
dormir pensando que, de fato, o amanhã nada mais é do que uma grande ilusão e
que é possível, ainda que por um apanhado de minutos, encontrar beleza em face à
tragédia. E, inclusive, tutano em salão de bar.