quinta-feira, 30 de julho de 2009

O homem da carrocinha


E não é que Laredo também tem o homem da carrocinha? Estava em casa no final da tarde quando ouvi ao longe um sonzinho vintage, parecido com aquelas musiquinhas tocadas em circos ou em parques de diversão de cidade de interior. Começou baixinho e à medida em que foi aumentando de intensidade, percebi que algo grande se aproximava. E eis que surge enorme, colorido e extremamente convidativo, um caminhão de doces. Na verdade, um caminhão de tudo o que é porcaria que adoraríamos poder nos entupir diariamente sem culpa, sem cáries, sem banha e sem colesterol: picolé, batata chips, picles, chocolates, caramelos, chicletes, raspadinhas. Tudo o que já foi um sonho e que hoje é praticamente ilegal nestes tempos politicamente corretos.

Senti um sensação também doce e morna ao avistar aquele carro sendo conduzido pela minha nova rua. Fiquei paralisada por uns instantes, sem acreditar que existiam carrocinhas de doces, mesmo em versão motorizada, aqui nestas bandas texanas. Não apenas isto, mas o fato de ainda existirem é o que me provocou mais espanto. Os pensamentos viajaram imediatamente à infância. Passavam pelo meu bairro pernambucano o sorveteiro, o homem do mungunzá e o homem do quebra-queixo. Cada um com seu jingle, ou seja, um assobio original que os diferenciava da concorrência. Eu era fregueza assídua, magra de ruim e com os dentes cariados.

O homem da carrocinha era um senhor com cara de mexicano. Andou devagarinho rua abaixo, a musiquinha tocando tininininim ,mas nenhuma criança veio à porta. Eu torcia para que alguma aparecesse gritando suada e em êxtase atrás de um picolé. Se fosse nos meus tempos eu já teria aporrinhado a paciência da empregada para me emprestar umas moedas. Onde estavam as crianças? Será que alguém contou sobre o homem da carrocinha versão Brasil? Não, o daqui não vai arrancar seu fígado! Venham, comam os doces, não se amarguem! Mas nada. A clientela estava vazia. No ar, um que de inocência perdida. Ouvi a musiquinha trafegando pelo bairro por mais uns minutos até sumir no abafado da tarde. Nas minhas observações que me levam a crer que estou ficando velha, constato que ainda existem carrocinhas, mas não mais crianças como antigamente.

Memory lane

Um dos termos mais belos da língua inglesa para mim é memory lane, algo como "estrada da memória", usado geralmente para evocar o passado e suas lembranças saudosistas. Ontem fui conhecer a memory lane de Laredo. Decidi tirar a tarde para passear pelo centro histórico da cidade e senti-la mais de perto, conhecê-la a partir das suas artérias mais cheias de saudades, gravitar ao redor do seu cordão umbilical. O bairro onde moro é muito agradável, porém relativamente novo, com casas relativamente novas, um típico subúrbio americano (subúrbio aqui é onde a classe média alta se refugia da vida geralmente caótica dos grandes centros. Laredo não tem o caos das metrópoles, mas as famílias parecem querer se afastar mesmo assim).


O bairro histórico de San Agustin, mais precisamente a Plaza de San Agustin, é o marco inicial da cidade, fundada em 1755 como Villa de San Agustin de Laredo ainda durante a colonização espanhola no México. O pavimento de tijolinhos vermelhos permanece intocado por vários quarteirões. A plaza é uma pacata pracinha com cara típica de cidade de interior: um coreto no meio, jardins bem cuidados e uma igrejinha à sua frente. Ao redor também localizam-se diversos prédios históricos que perteceram aos primeiros moradores. Um deles é hoje o Museu da República do Rio Grande, que além de sede deste governo no século XIX, também foi a residência de um dos seus fundadores.

Em 1840, cerca de 20 anos após o México conquistar sua independência, três estados do norte --Taumalipas, Nuevo León e Coahuila -- segregaram-se por descontentamento com o governo centralista mexicano do ditador Santa Anna e criaram sua própria república federalista. Laredo, então, virou a capital da República do Rio Grande. Quando o exército centralista finalmente avançou sobre Laredo e derrotou os federalistas, Antônio Zapata (não confundir com Emiliano), líder da cavalaria da nova república, teve sua cabeça arrancada e exposta durante três dias para intimidar os oponentes. A República durou apenas 283 dias. De toda forma, Laredo orgulha-se de ter sido a única cidade texana a existir sob sete bandeiras: Espanha, França, México, República do Texas, Confederados, Estados Unidos e República do Rio Grande. Na plaza, todas estas bandeiras flamulam no exterior do museu e no hotel histórico La Posada.


Caminhando pelas ruas de San Agustin, a poucos metros das pontes internacionais que ligam o país ao México, sentia um misto de curiosidade e revolta. Curiosidade por tentar ver os detalhes daquilo que já foi um dia e revolta por ver a realidade daquilo que é hoje. A verdade é que, fora um pequeno trecho preservado localizado em volta da plaza, o restante do bairro é uma espécie de centrão popular onde os belos prédios históricos viraram depósito de bugingangas made in China para venda no atacado ou no varejo. Salvo algumas perfumarias e lojas de roupas e uma ou outra loja com os vestidos de gosto duvidoso de quinceañeras (debutantes de 15 anos, tradição ainda muito forte na cultura mexicana),quase todos os estabelecimentos vendem mares de lixarada cafona plástica e purpurinada. Quando a fome apertou, saí em busca de alguma lanchonete aconchegante com um pouco de alma, mas tudo o que encontrei foram filiais gordurosas de fast-food de galinha frita. Aquela descaracterização dos tempos modernos em pleno solo sagrado da história me tirou a fome. Foi a mesma sensação que tive quando vi uma KFC e um Taco Bell em frente às pirâmides milenares do Egito. Sou 100% a favor da modernidade, mas 0% a favor do tipo de modernidade baseada no consumo desenfreado de porcarias.

Parti então em direção à plaza, que havia conhecido em maio durante minha primeira visita à cidade. Ela permanecia exatamente igual, bonita e bem conservada. Várias pessoas descansavam nos banquinhos de pedra doados por famílias e instituições. A mesma plaza que, no passado, foi palco de celebrações de tribos indígenas após saquearem a cidade, recepções das tropas militares da coroa espanhola e, em 1855, uma batalha entre os grupos políticos rivais Las Botas e Los Guaraches. Me dirigi ao museu e percebi que eu era a única visitante. Perguntei ao simpático senhor da recepção quantas pessoas apareciam ali por dia. Ele disse, com cara de desolação, que às vezes nenhuma. Porém, falou com um certo orgulho que nem sempre foi assim, pois o museu já chegou a comportar 3.000 pessoas por mês nos tempos áureos do turismo. Ou seja, há não mais que cinco anos, quando a violência proveniente dos cartéis do narcotráfico do outro lado da fronteira não era tão pronunciada. As pessoas visitavam o museu em consequência de sua viagem ao México, mas o turismo foi fortemente afetado depois que sequestros, tiroteiros e até explosões de granadas passaram a ocorrer com frequência em Nuevo Laredo. Dizem que atualmente a violência diminuiu, mas a verdade é que as pessoas de Laredo sentem muito medo de cruzar a ponte.


Minha visita ao pequeno museu foi bastante informativa. Eu me deliciei com aquele mergulho no passado. A casa, construída em 1830 e expandida em 1861, ainda tinha o piso, paredes e vigas originais. Havia vários objetos expostos, como uma bandeira original da República do Rio Grande, armas do século XIX e uma representação dos aposentos, como a sala de estar, o quarto e a cozinha.

O quarto era uma representação do período de 1840 a 1880. Ao olhar para aquela cama, pensava se todas as 12 crianças criadas naquela casa tinham sido geradas ali. Me encantei com as lingeries, as sombrinhas e o sapato de mulher. Absolutamente femininos e encantadores.



Na cozinha, havia uma amostra de objetos de ferro facilitadores dos trabalhos das donas de casa, como máquinas manuais lavar roupa, engenhocas de fazer linguiça e batedores de manteiga. Os tataravós dos eletrodomésticos.

Quando terminei minha visita, uma equipe de um canal de TV de Nuevo Laredo se preparava para fazer uma matéria sobre o museu. Na lojinha, me dei de presente um livro de um autor local sobre sua viagem de canoa pelo Rio Grande, "The Tecate Journals". Para W, comprei um livreto sobre a história da organização dos advogados na cidade.

Saí e, guiada pela fome, finalmente encontrei uma lanchonete avulsa (não uma filial de restaurante gorduroso) bem simples a duas quadras dali. A atendente, uma senhora de cabelo ruivo endurecido por quilos de laquê e muita maquiagem nos olhos anotou o meu pedido de um taco pirata: carne de fajita, feijão refrito e queijo derretido enrolados numa tortilha de milho. Sustança para uma tarde cultural!

Satisfeita, sentei-me num banquinho em frente ao antigo Cine Plaza, já desativado porém ainda reluzindo o mesmo letreiro dos anos 40/50. Revezava entre ler meu livro recém-adquirido e observar os arredores e as pessoas. Estava feliz por ter tirado aquela tarde para ir à rua e quebrar minha rotina de ficar horas em casa no computador fazendo um projeto voluntário para uma empresa no Brasil. A rua é onde a vida pulsa, é onde o passado e o presente se consolidam, se entrelaçam e se confrontam. São bastantes especiais aqueles que ainda lutam para preservar a memória da cidade, pois como sabemos um povo sem memória é não apenas um povo sem futuro, mas é um povo de presente insosso também. Laredo me pareceu um lugar bem mais interessante após aquelas horas de imersão no seu legado histórico.

Certamente ainda há muito a ser feito. Existem vários prédios interessantíssimos semi-abandonados, como um velho hotel onde o ditador mexicano Santa Anna ficou hospedado a caminho da batalha do Alamo em 1836, a mais famosa batalha da Revolução Texana. Hoje o hotel parece um cortiço caindo aos pedaços. Toda aquela área poderia ser reformada e revitalizada, com a instalação de cafés, restaurantes típicos, galerias de arte e cinemas, por exemplo. Certamente o turismo local só iria se beneficiar, tornando-se mais independente da cidade vizinha mexicana. Mas como tudo nesta vida se resume a dinheiro, é necessário que algum empresário ainda veja o potencial turístico de "downtown".

Enquanto estava entretida com meu livro, um louco imundo e maltrapilho me pediu um dólar. Era alto, magro e gesticulava bastante. Respondi que não tinha dinheiro, mas ele gentilmente me ofereceu um pouco do seu suco de maçã de caixa. Falei que não queria, obrigada, mas ele insistiu. Respondi negativamente mais uma vez e fixei meus olhos no livro. O doido então partiu com sua caixa de suco na mão, risonho, falando suas doidices ao quatro ventos, mais um personagem a se perder nas ruas de memory lane.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Meda: fantasmas no motel

Antes de achar que estou sendo safadinha, vale lembrar que o sentido original de motel vem aqui dos Isteites: trata-se de um hotel de beira de estrada onde você estaciona seu carro e hospeda-se. O brasileiro, este ser safado (ainda bem) por natureza (ops, já entrei em contradição!), se apropriou do termo para nomear os diversos templos de prazeres espalhados pelo país. Portanto, aqui nas bandas do norte, motel é hotel e você não é obrigado a fazer fuque fuque se não quiser. Famílias inteiras hospedam-se nestes motéis para descansarem após um longo dia de viagem. No caso do Motel 6, em Sinton, Texas, fantasmas também.

Estávamos cansados da longa sexta-feira viajando 2h30m de Laredo a Sinton para a reunião do partido Democrata regada a várias horas de recepção com cerveja, barbecue e palestras políticas. Eu e W. queríamos dormir cedo, pois um dia na praia do Golfo do México nos aguardava na manhã seguinte. Estacionamos o carro nos fundos do motel. A noite era um breu total e não conseguíamos ver o que se localizava à frente do estacionamento. Tão sonolentos estávamos que nem fuque fuque ocorreu.

W. adormece rapidamente. Eu, após um breve ensaio de não mais de meia hora, acordo como se tivesse tomado três litros de Redbull. Começo a sentir um medo que me parece bastante irracional: medo de fantasmas. Olho para a cama vazia ao lado e acho que alguma imagem fantasmagórica aparecerá sorrindo maldosamente para mim. Verdade: de vez em quando sinto uns pavorzinhos assim. Deve ter sido a educação de terror em colégio católico. Mas ali, naquele lugar totalmente neutro, agarrada ao meu homão de 1,90m e 90Kg, este pavor não faz o menor sentido. Fecho então os olhos para evitar contato com os defuntos e falo para mim mesma que tudo aquilo é irracional. O relógio se arrasta madrugada adentro e nada do sono se apoderar de mim. Enquanto isto, durante a noite, W. pula da cama pelo menos quatro vezes de forma bastante violenta! Ele nunca foi de pular da cama. Parecia um ex-combatente do Vietnã tendo flashbacks de bombardeios. Imediatamente após cada convulsão sonâmbula, ele volta a dormir. Na verdade, me dou conta que ele nunca nem despertou. Num destes espasmos, se agarra à minha cintura e como uma criancinha, diz: "me abraça, me abraça, estou com tanto medo". Meda, pavor, pânico! Apesar de aterrorizada, preferi não acordá-lo.

De repente, escuto vozes. No quarto ao lado, um casal discute violentamente. Quinhentos "fuck you" por minuto de cada parte. Meu coração quer pular fora do corpo. Que diabos está acontecendo naquele lugar? O medo começa a me paralisar. Sinto que serei testemunha de algum crime de tão porradaria que está sendo a briga. Começo, então, a rezar, suplicando para que uma legião de anjos entre no quarto e aparte aquela briga. As preces são atendidas: em menos de cinco minutos uma mulher bate à porta do casal e pede firmemente para que parem, não se machuquem e deixem todos dormir. A briga para e eu certamente tenho minha fé renovada.

Vejo o dia raiar. Não dormi quase nada, apenas alguns cochilos espaçados entre um pânico e outro. Minhas olheiras batem nos pés. W. acorda de bom humor dizendo que apagou e estava pronto para ir à praia. Conto para ele tudo o que ocorreu durante a noite. Ele não se lembra de absolutamente nada sobre seus violentos pulos e também não ouviu nada do tumulto do quarto ao lado.

Saíamos do motel pela porta dos fundos em direção ao carro. E ali, em plena luz do dia, a cerca de 15m do quarto, avistamos o cemitério histórico do condado de San Patricio repleto de lápides e de fantasmas que enfim descansavam para naquela noite tirar o sono dos próximos hóspedes do quarto 120.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Angariação de fundos do partido Democrata: minha breve introdução à política do sul do Texas



Na sexta-feira, 24 de julho, partimos em direção a Sinton, uma cidadezinha do sul do Texas com pouco mais de 5.000 habitantes, para assitir a uma angariação de fundos ("fundraising") do partido Democrata. Lembrando que o Texas é um estado primariamente Republicano, governado por um Republicano, Rick Perry, há 11 anos. O sul do estado, porém, tem maioria Democrata. W, meu noivo, é um forte militante do partido Democrata, tendo sido um dos principais voluntários da campanha de Obama em 2009 em Laredo.

Lembrei-me de como são comuns estes eventos de angariação de fundos aqui nos EUA. É uma cultura amplamente disseminada, assim como os abaixo-assinados. No evento em Sinton, pessoas físicas pagavam US$ 35 por cabeça e os condados (instâncias geo-políticas superiores à cidade, porém inferiores ao estado) podiam comprar mesas que variavam de US$ a 300 a US$ 1000.

Foi uma experiência muito rica ver a cara do partido Democrata aqui do sul do Texas, sobretudo no que diz respeito às pessoas comuns que estavam ali para se informar e apoiar o partido. Eram em sua maioria Hispânicos, como praticamente toda a população da região, mas também havia uma boa quantidade de não-Hispânicos. Neste caso, quase todos brancos (tenho consciência que estou erroneamente considerando a classificação local de que todos os Hispânicos são morenos). Não vi negros. Homens e mulheres pareciam estar presentes na mesma proporção, porém a faixa etária média era 50 anos. Havia raríssimas pessoas na casa dos 20 e 30 anos. Todos pareciam muito simples, vestindo roupas simples e comportando-se de maneira simples. Não vi afetações. Era o povo, a massa, o povão.

A primeira parte do evento era uma "VIP party" numa lojinha de antiguidades na simpática Main Street da cidade. Na verdade qualquer pessoa podia entrar, mas nada como marketing para dar mais glamour às denominações. Entre comes e bebes, as pessoas faziam networking e conheciam alguns dos palestrantes e candidatos que estariam presentes no evento oficial daquela noite.


Após uma hora na recepção, partimos para o evento oficial no centro de convenções, que atraiu entre 400 e 500 pessoas e foi considerado um sucesso. Como tudo neste país, começou com comida: um buffet de "barbecue", uma atrocidade deliciosa de colesterol e calorias. Havia algumas pessoas tão obesas na platéia que só conseguiam se locomover através de cadeiras de rodas. Os candidatos palestrantes do partido posicionavam-se nas filas para se apresentar aos seus futuros eleitores e entregar-lhes seus cartões de visita que incluiam informações de site, e-mail, Twitter e Facebook. Como sabemos, as mídias sociais foram de enorme importância na campanha de Obama.

Após o jantar, uma adolescente subiu ao palco para cantar o hino nacional, mas desafinou e engasgou nas notas mais altas. Foi aplaudida ainda assim. Em seguida, uma oração cristã de gratidão, finalizada com um vibrante e cheerlídico "God bless Texas" proferido por Rose Harrison, a Coordenadora Democrata do Condado de São Patrício, onde situa-se a cidade de Sinton. Rose, que na adolescência foi "cheerleader", era uma boa apresentadora e fez questão de usar trajes chamativos: um vestidinho azul cheio de grandes pedras na gola, botas de cowboy azuis e um chapéu de cowboy em um outro chamativo tom de azul. Ainda antes de chamar os palestrantes, ela e outros apresentadores fizeram longos agradecimentos a diversos militantes ali presentes, incluindo W. Nota-se que aprenderam muito bem a personalizar a comunicação para torná-la mais eficiente e motivar a auto-estima dos colaboradores.

Entre os palestrantes, destacavam-se:

- Palestrante principal: Henry Cisneros, Secretário de Moradia e Assuntos Urbanos do governo de Bill Clinton.

- Candidatos ao senado federal pelo Texas Bill White e John Sharp, que ainda competirão nas primárias para ver quem será o candidato único do partido Democrata.

- Candidato ao governo do Texas Tom Schieffer, que foi embaixador na Austrália e no Japão no governo de George W. Bush.

Como um bom comunicador, Henry Cisneros sabia usar as palavras, as frases, as entonações e as histórias certas para tocar o coração e mentes dos seguidores do partido. Seu discurso tinha um objetivo de animar a massa ali presente para as eleições de maio próximo. Trouxe lágrimas aos olhos de alguns ouvintes ao contar a história do funeral de Franklin D. Roosevelt, na qual um homem muito emocionado viu o cortejo fúnebre passar e, ao ser perguntado se conhecia FDR, respondeu "não, mas ele me conhecia muito bem." O propósito era mostrar como o partido Democrata quer conhecer cada um dos seus eleitores.

Entre os candidatos ao senado, Bill White, atual prefeito de Houston, certamente se mostrou mais bem articulado. Indicou no seu discurso que "política é algo pessoal sim, pois tem a ver com o seu emprego, sua moradia, sua saúde e se seus pais de 80 anos terão dinheiro para pagar as contas domésticas e os remédios no final do mês." Também exaltou sua altíssima taxa de aprovação como prefeito (89%), um projeto focado na instalação de grandes áreas de produção de energia eólica e como conseguiu absorver e dar assistência aos mais de 100.000 refugiados após os furacões Katrina e Rita. Já John Sharp mencionou que foi derrotado duas vezes por candidatos do partido Republicano, porém "com uma baixa margem". Também prometeu que, se eleito, focará em dar educação universitária gratuita a jovens que prestarem serviços comunitários, já que o custo da anuidade universitária ("tuition") é muito elevado no país. Neste ponto, observei várias pessoas balançando as cabeças em concordância e alguns aplausos. O candidato a governo do Texas falou por não mais que três minutos e basicamente só instigou os ouvintes a votarem democrata nas próximas eleições.

Enfim, esta foi minha breve porém instigante introdução à política local. Confesso que saí de lá me sentindo mais informada, diria até que talvez mais politizada. Soa ingênuo. E é. Não sou uma completa desinformada, mas a verdade é que também nunca fui de me aprofundar muito em política brasileira, que sempre me causou algum sono, mesmo sabendo que isto soa tão irresponsável. Porém desde que me mudei para Laredo me vejo devorando sites e notícias para me munir mais de informações e consolidar algumas opiniões a respeito das políticas e economias norte-americana e brasileira. Afinal, grande parte das conversas que presencio com os meus novos amigos (ou seja, amigos de W), é sobre política. Portanto, não dá para ficar de bibelô sorridente ou pincelar rapidamente os fatos quando grandes debates vem à tona. A motivação para o interesse político tem que vir de algum lugar, mesmo que seja do casamento.

domingo, 26 de julho de 2009

Domingo

Deus criou o mundo no domingo para no sábado descansarmos. A humanidade mudou a ordem e fez do domingo o dia do descanso. E, independentemente de passarmos a semana trabalhando insanamente ou de desacelerarmos em sábaticos dias, o domingo sempre amanhece com um véu de suave melancolia, uma preguiça entranhada nos lençóis, questionamentos em profusão.


É preciso preparar alguns projetos. Tempero um peixe para W. Misturo banana, leite de côco, duas colheres de creme de leite, salsinha fresca. No escritório, W estuda sua lição de português. Há muitos idiomas a serem aprendidos quando se casa. A língua mãe de cada um é apenas um detalhe. Desbravam-se os olhares, os pequenos cuidados, o beijo prolongado, o sono, as gargalhadas, os silêncios. Há tantas sintaxes e proparoxítonas nestas conjugações. Do canto da sala, uma voz: "oi, rainha, estudo por você. " Meu coração se amorna e o peixe cheira bem.

Dois pratos e quatro talheres sobre a mesa. Ele adora o mesmo peixe que eu acho um horror. Ambos requentamos o feijão da sexta-feira. Uma refeição servida é mais um projeto que se acaba. Vamos cuidar da casa: o chão está encardido, coloque os cachorros para fora, aqui está o rodo, recarregue a furadeira para pregarmos as novas luminárias. O vento sopra quente sobre as árvores do quintal e meus dedos ainda cheiram a cebola e alho. Existem algumas pequenas alegrias vindas das minúsculas sequências de diminutos atos que tornam os domingos tão grandiosos.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Cidade bilíngue

"What would you like to drink, ma'am? Café? Agua? Refresco?" Laredo é uma cidade bilíngue. Inglês e espanhol mesclam-se na mesma frase em total harmonia e naturalidade. Você pergunta algo em inglês e o interlocutor decide o idioma da resposta. Em algumas situações, é mais necessário saber espanhol do que inglês. Esta semana trocamos o telhado de casa, destruido pela geada de meses atrás. Como praticamente todos os trabalhadores braçais destas bandas, os homens que fizeram o serviço eram mexicanos e não proferiam uma palavra sequer em inglês. Caso eu não soubesse espanhol, não haveria comunicação. Em alguns caso, por falarem rápido demais, eu realmente não conseguia entendê-los. Cheguei a pedir para um deles repetir a mesma frase seis vezes, mas como meu cérebro não captava nada, apenas lhe servi uma Diet Coke e ficou por aquilo mesmo.

A população da cidade é 94% de origem hispânica, quase totalmente descentente de mexicanos. Portanto, mesmo os nascidos nos EUA falam espanhol, pois foi o idioma falado em casa. Além disto, tem um sotaque distinto, com uma certa diferença nos "erres"e na entonação. Como casam-se com outros hispânicos, continuam a reproduzir o ambiente em que cresceram. Outro dia fomos visitar uma amiga do meu noivo que estava se recuperando de um aborto devido a uma gravidez tubária. Ela é descendente de mexicanos, mas foi criada em inglês e só aprendeu espanhol mais tarde. Seu marido é também descentende de mexicanos. Falam inglês com espanhol salpicado nas frases. Em poucos instantes chegou um outro casal de amigos com dois filhos pequenos. A mãe era mexicana, o pai era americano de origem hispânica. Com os filhos, falavam os dois idiomas na mesma frase. As crianças de 4 e 2 anos entendiam perfeitamente.

Comecei hidroginástica esta semana. No primeiro dia, a professora, notadamente de origem hispânica, fez toda a aula em inglês. "Up, down, there we go ladies! One, two, three, put your knees up!" Já a instrutora de ontem falava assim: "Uno, dos, tres! Legs up! Three, four, five! Ahora con los brazos arriba de la cabeza. Very good, ladies!".

Há um jornalzinho local chamado Rio Magazine. É basicamente um espaço para coluna social e publicidade. O editorial é em inglês, mas os anúncios são quase todos em espanhol.

Estatísticas: de acordo com o Censo americano, em 2006 Hispânicos e Latinos constituiam 14,8% da população dos EUA, ou 44,3 milhões de pessoas. Os descendentes de mexicanos representam 64%, seguidos de 9% de porto-riquenhos. Na Wikipedia você encontra um vasto artigo sobre como é feita esta classificação étnica tão cheia de detalhes. A projeção é de que em 2050, existam mais de 120 milhões de hispânicos no na terra do tio Sam. Atualmente, o ritmo do crescimento desta população (24,3%) é três vezes maior que o crescimento da população total do país (6,1%). O Texas é o segundo estado com a maior população hispânica (8,4 milhões), atrás da Califórnia (13 milhões). Em terceiro lugar está a Flórida (3.6 milhões). Os EUA são o segundo país com o maior número de falantes em espanhol, atrás apenas do México. Ainda de acordo com o Censo, metade indica falar inglês "muito bem".

Existe uma imensa controvérsia sobre o uso do espanhol nos Estados Unidos. Alguns grupos afirmam que será o idioma oficial do país em algumas décadas (e aborrecem-se por completo), outros afirmam que não há riscos para o idioma inglês. Não vou entrar agora nos detalhes defendidos pelas correntes de pensamentos sobre esta discussão , mas acredito que a cultura bilíngue seja extremamente rica e benéfica. Existe uma diferença na forma de se expressar em inglês e espanhol, e como é proveitoso poder selecionar a maneira mais conveniente. Laredo e o país certamente se tornam mais interessantes por conta desta flexibilidade. E acredito sim que quem discorde disto no fundo seja um grande preconceituoso. Como a história bem mostra, linguagem é poder. Querer parar um idioma é uma forma de dominar, colonizar. Que o digam os idiomas indígenas existentes no Brasil. Lá, no século XVIII, o Marquês de Pombal proibiu as línguas indígenas e decretou o português o idioma oficial. Isto fazia parte da sua visão de tirar o país do "atraso", ou seja, de extirpar qualquer forma de manifestação que não fosse a do dominador. Certa vez fui a uma manicure mexicana aqui em Laredo e ela me disse que trabalhava numa empresa com outros mexicanos. De acordo com ela, existia uma distinção social entre os que falavam o inglês mais correto e com menos sotaque. A corda sempre aperta mais para o lado do "colonizado."

Como a língua é dinâmica, gostaria de voltar em 100 anos para saber como será o idioma de então. Um espanhol inglesado? Um inglês espanholado? Aqui existe um termo chamado "Spanglish", o equivalente do nosso portunhol. Talvez já seja o começo do amanhã.





terça-feira, 21 de julho de 2009

Dona Amélia, a diarista

Na primeira vez que conheci Dona Amélia*, numa manhã lareirense de maio, eu ainda tinha o status de namorada-visitante do novo lar. Ela me reconheceu pelas fotos que meu então namorado, atual noivo, havia colocado em diversos lugares da casa. Nem por isto, deixou de me olhar desconfiada. Eu que só havia visto diaristas mexicanas em filmes, estava ali em contato com um exímio exemplar. Com sua voz aguda e fala acelerada, não proferia uma palavra em inglês. Passou a tarde limpando a casa e trocamos apenas rápidos sorrisos típicos de quem quer apenas fazer um contato para mostrar educação. Até o momento em que recolheu minhas calcinhas da máquina de secar roupa.

"Mira, que chiquititas...son para momentos muy especiales, no?" Eu havia esquecido de guardá-las. Não queria passar pelo constrangimento de dar minhas calcinhas para ela naquele momento. Aprendi que estas coisas a gente só faz quando já se tem alguma intimidade -- ou quando pelo menos se reside no lugar, não quando se está de férias. Diante do seu comentário, apenas sorri um tanto constrangida, e olha que não sou de me constranger com estas coisas. Porém ela não se deu por vencida e ao receber apenas o meu sorriso como resposta, fez uma cara que misturava malícia com reprovação. "Que pequenitas, muy pequenitas. Veo que son para momentos muuuuuy especiales. Sí, momentos especiales con su señor." Então percebi que ou eu me deixava constranger ou contornava a situação. Afinal, era o momento decisivo de mostrar respeito, já que muito em breve eu seria a "señora de la casa." Olhando firmemente para seus olhos, respondi em espanhol: "não, senhora, estas são as calcinhas que uso diariamente. As calcinhas sem graça. As para momentos especiais são beeem menores do que estas." Surpresa com minha resposta de fala firme, ela arregalou seus olhos redondos atrás dos óculos e apenas deu um sorriso meio desdenhoso, mas satisfeita por não ter escondido sua alfinetada inicial.

Dois meses depois, Dona Amélia voltou à casa para mais um dia de faxina. Abriu a porta principal às 9h da manhã e levou um susto ao me ver. Eu a recebi com um acalorado sorriso e lhe contei a novidade do meu status oficial de noiva. Sua alegria foi imediata: "Que bueno! Ahora el señor de la casa "tiene una señora!". E a partir daí, Dona Amélia se mostrou uma verdadeira tagarela. Uma simpatia de mulher, mas uma tagarela sim. Durante todo o dia, tive que escutar o quanto era maravilhoso eu estar aqui, pois um homem sem uma mulher não vale nada. E que eu escolhi um homem muito bom, sem vícios. Ah, porque o outro rapazinho que aluga um quarto aqui tem muitos vícios. "Que vícios, Dona Amélia?". "Bueno, alcohol e un cigarrillo de marijuana". Pobre roomate Ted*. Ela deve ter entrado em seu quarto em alguma manhã de ressaca. Ainda ontem eu conversava sobre drogas com este cara gente boa, e até onde saquei, faz meses que ele não sabe o que é um baseado.

Durante a manhã eu me dividi entre um trabalho no computador e o preparo do almoço. Ao me ver temperando a galinha, não hesitou: "mas que maravilha, você sabe cozinhar! Quero aprender, porque nem eu sei cozinhar assim, você vai ter que me ensinar! Ah, como é sortudo 'su señor', pois tem uma mulher que cozinha comida de verdade. Vai ficar gordinho, tenho certeza". E dava uma risada aguda de satisfação. Entre um risada e outra, Dona Amélia perguntou se eu queria ter filhos. Indiquei que sim, mas que gostaria de esperar um pouco. "Ah, claro, esperar a fase da lua de mel passar", ela soltou. Foi quando então me contou uma história que mal acreditei.

Dona Amélia ficou grávida um mês após casar aos 19 anos. Seu marido tinha 22. Até aí tudo bem. Mas disse que faltando uma semana para o bebê nascer, ela ainda não sabia por onde a criança ia sair. Ninguém falou para ela. Em suas palavras, disse que até a noite de núpcias nenhum homem havia "tirado suas calcinhas" e que nenhuma mulher da sua família ou amiga jamais lhe ensinou nada. "Mas e ele, sabia?", perguntei. "Claro, pues. Era hombre." Intrigada com aquela história, quis saber mais. De onde era ela? Em que ano foi aquilo? Guadalajara, México, 1964. Os anos 60 fervilhando e Dona Amélia mergulhada na ignorância -- palavra, inclusive, que ela mesma usou para descrever sua situação. Mais uma pergunta minha: "e para sua filha, você contou o que ela tinha que fazer?". Sua resposta foi enfática: "não. Ela estudou aqui neste país (EUA), então eu não precisava dizer nada."

Eu comecei a enrolar uns brigadeiros que daria como agradecimento a um amigo enfermeiro do meu noivo que me ajudou quando fiquei doente assim que cheguei à cidade. Dona Amélia ficou encantada com os docinhos e deu novamente muitos vivas à minha habilidades culinárias. Então soltou mais esta: "aqui as coisas são muito mais liberais. Ou melhor, libertinas". E começou a proferir sua visão de que os tempos passados eram melhores, pois as mulheres se davam respeito e não competiam para ver quem dormia com mais homens. Falei para minha filha que se quisesse namorar, podia. Mas só se o rapaz viesse pedi-la para mim em namoro. Homem que não fizesse isto, é porque só queria tirar vantagem." Às 17h sua filha veio buscá-la e ela terminou o serviço.

É, Dona Amélia, outros tempos. Hoje a gente coabita antes de casar. Faz test-drive pra saber se funciona. Eu estou gostando muito. Mas soube através de minha mãe que há menos de um mês meu noivinho pediu para meu pai se podia casar comigo. É Dona Amélia, ainda bem que o tempo não varreu por completo algumas tradições.

*Nomes mudados para preservar a identidade dos personagens.

Sauna de Sata e o po do semi-arido

Chamo Laredo carinhosamente de Sauna de Sata (ta faltando acento, mas eh do Demo mesmo que estou falando). Cresci em area urbana do sertao nordestino, onde dava para se fritar ovo na calcada, mas nada como isto aqui, onde eh possivel cozinhar omeletes inteiras e praticamente eliminar o uso do fogao! A temperatura alta anual tem media de 37 C, enquanto que a temperatura baixa fica em 24 C. Jesus Christ the Lord, fucking 24 C! Ontem, por exemplo, os termometros marcavam 42 C. As 19h (isto mesmo, sete da noite!). Tenho certeza que o Tinhoso estava nas redondezas tomando umas margaritas tequiludas. A temperatura seca eh influenciada pelos desertos do norte do Mexico, enquanto que as correntes de ar umido chegam atraves do Golfo do Mexico. Ate agora, so vivi dias umidos e nao estou falando de pornografia. Amo o Mexico (lugar que ja em momentos passados mudou minha vida para sempre), mas quanto ao clima, ele botou pra quebrar em Laredo. Certamente deve fazer parte da vinganca mexicana sobre o primo rico do norte.

E, assim, fica impossivel viver sem ar-condicionado. Nao da para ser politicamente correta e economicamente sustentavel. A conta de energia eh astronomica. As casas parecem ser construidas para dependerem do uso constante de refrigeracao artificial e todo lar tem um ar-condicionado central que fica ligado o dia inteiro. Na minha casa, desligo o aparelho por nao mais que 40 minutos diariamente, quando abro portas e janelas para fazer circular o ar. O ar saturado de areia fina do semi-arido texano e mexicano, que lentamente vai tomando as frestas das persianas, os cantos das janelas, os esconderijos sob as cadeiras. "Pergunte ao po", diria Fante. Nao pergunto nada. Peco apenas que ele nao me cubra antes de eu ficar bem velha, mas ele barbariza com uma lufada entupidora de narinas: "ta bom pra voce?".

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Resuminho basico sobre Laredo (e uma certa semelhanca com minha cidade natal)

Resuminho basico para contextualizar meus leitores sobre Laredo, Texas. Descobri que, pelo menos estatisticamente, nao eh tao fim de mundo assim.



Segunda cidade que mais cresce nos EUA, atras apenas de Las Vegas, Laredo tem aproximadamente 218.000 habitantes e localiza-se na fronteira com o Mexico. Para os padroes americanos, eh uma cidade grande. Fundada em 1755, sob dominio espanhol, sua area metropolitana hoje inclui Nuevo Laredo, a irma mexicana do outro lado do Rio Grande. Juntas totalizam 734.000 habitantes. Sua principal fonte de renda eh o intenso intercambio com o Mexico, sendo considerado o maior porto em terra localizado nos Estados Unidos e a 4a cidade no ranking de volume de comercio, atras apenas de Nova Iorque, Los Angelos e Detroit.


Mais informacoes no site da cidade.


Tenho observado varias semelhancas com minha cidade natal Petrolina, Pernambuco. A comecar pelo clima semi-arido, a vegetacao seca e amarronzada, salpicada de algarobas e cactus, que esverdeja rapidamente com qualquer pingo de chuva. Em seguida, o fato de ser uma cidade fronteirica, com um enorme rio a atravessar seu coracao -- ainda que, infelizmente, nao de para tomar banho nas aguas do Rio Grande (escolha morrer de infeccao causada por poluicao ou por um tiro disparado pela patrulha da fronteira!). A vocacao para o comercio, o aeroporto internacional, a enorme quantidade de novos bairros e condominios surgindo por todos os lados, a limitacao de atividades artistico-culturais...mas nada que me faca sentir em casa (sim, apesar da alma de viajante e de ja ter saido de la ha mais de 15 anos, Petrolina eh minha raiz mais forte) . Por enquanto, sou mera observadora, alheia a tudo e a (praticamente) todos, em processo de absorver o caldo que todo lugar tem, com um certo cuidado para nao pre-julgar. Dificil tarefa, mas nunca eh tarde para aprender.

Prefacio

Ja faz duas semanas que cheguei ao novo territorio e tenho adiado meu primeiro post porque queria ser fiel a lingua portuguesa e escrever com todos os acentos, crases e cedilhas. Bom, fidelidade eh relativo, pois ainda ainda nao coloquei em pratica nada da nova revisao gramatical implementada no inicio do ano. Deu uma preguica danada de aprender. Mas enfim: estou em terras norte-americanas e meu atual PC nao escreve na lingua patria, nem quando eu tento mudar a configuracao do idioma. Comprei um teclado em portugues, mas a principio so esta servindo para eu trocar ideias com o servico de atendimento ao consumidor do produto. Nossa flor do lacio ta dando um trabalho da gota e ainda nao consegui capturar um acento circunflexozinho. Enquanto aguardo respostas do SAC, meus dedos cocam, a lista das observacoes crescem e eu nao resisto: comeco, assim, sem acentos, mas procurando acentuar cada fato, sem cedilha, mas nao esquecendo de ver o rabinho dos acontecimentos, este diario virtual de mais uma jornada que vai me levar nao sei ainda aonde, mas que ja esta sendo uma viagem. Apertem os cintos.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Desbravando

Desde pequena tenho uma fome alucinante por tudo o que eh estrangeiro. E nao estou falando so de homem nao! Entram aqui idiomas, culinaria e manifestacoes culturais em geral. Na minha cabeca, faz sentido pensar que eh porque eu fui gerada num estado e nasci na fronteira entre dois outros estados. Morar na minha cidade natal para o resto da vida nunca foi uma alternativa viavel. Loucura era nao sair. Cair no mundo era e ainda eh a unica forma de me sentir viva (ainda que seja tao facil me trancar em alguns universos particulares). O ideal romantico de colocar a mochila nas costas e se jogar ainda continua em alta, ainda que com o tempo a necessidade de maior conforto comece a falar mais alto (ja penso duas vezes antes de encarar uma barraca de camping!). Mas ao me jogar na estrada, sobretudo se estiver rodeada por um idioma diferente do meu e umas situacoes onde eu me sinta completamente perdida, ai sim eh que a vida pulsa. Eh o cano de escape pra quem geralmente tem a tendencia a querer controlar o incontrolavel.

Lembro que ainda pequenininha gostava de olhar para o mapa mundi (naquela epoca ainda existiam a URRS e a Checoslovaquia, e o estado do Tocantins era apenas um grande e vasto Goias). Gostava de buscar nomes para os meus futuros filhos inspirados em paises e cidades: Mauricio, Italia, Grecia, Trinidade, Cairo. Algumas decadas depois conheci uma mulher chamada Italia e dei uma risadinha de satisfacao por dentro. Eu e minha irma tambem tinhamos um caderninho de colagens, onde pregavamos fotos de modelos recortadas de revistas de moda e faziamos de conta que era nosso album de viagens. Uma roupa para cada cidade e pais visitado. Eramos umas globe trotters de armario.

Quando algum amigo estrangeiro dos meus pais vinha nos visitar, eu ficava abestalhada tentando compreende-los. Eram aliens, sem duvida. Seres diferentes que carregavam um aura fascinante. Certamente porque traziam seu mundo consigo e despejavam-no sobre a mesa de jantar com aqueles sotaques engracados e charmosos, aquelas historias de alem-mar que me faziam viajar junto.

Praticamente nao viajei durante a infancia. Minha familia nunca foi de planejar ferias e meus pais viveram anos bem apertados economicamente durante minha pirralhice. Minhas amigas faziam excursoes de onibus para o Paraguai -- imaginem so, 4 dias de viagem dentro de um busao, atravessando o Brasil -- e o Paraguai me parecia o paraiso exotico na Terra. Escutava suas historias de viagem e depois eu inventava um portunhol fuleiro para conversar sozinha pelos cantos da casa. E quando via suas fotos de viagens a Disney, eu queria morrer de pura inveja e vontade.

Aos 11 anos entrei no curso de ingles, o ET English TOEFL. Certamente o melhor curso de ingles ja inventado. O metodo, ate onde sei, foi criado pelo dono do curso, Henry Sauerbrown, um americano de Illinois que se mudou para o sertao nordestino, casou-se por la e criou seus filhos ate falecer ha poucos anos. Henry, ou melhor, Henrique, como era chamado, foi um dos grandes incentivadores do meu desejo de correr o mundo, pois alem de ensinar sua lingua nativa, seu curso fomentava o desejo de conhecer de perto a cultura americana. Aos 16 anos meu ingles ja era otimo, faltava apenas aprimorar as girias e a velocidade natural do idioma. Consegui entao embarcar num intercambio para Iowa, onde estudei por um ano numa high school. Dois anos depois, consegui uma bolsa de estudos para retornar ao pais, cursar faculdade e trabalhar por um periodo, totalizando 5 anos de Kansas. Como quase todo brasileiro, tenho uma relacao de amor e odio com os Estados Unidos, um pais que foi tao generoso comigo, que me deu experiencias riquissimas de vida, mas que eu ainda tenho uma dificuldade enorme de digerir diversos aspectos da sua cultura e modo de viver. Mas enfim, sinto o mesmo em relacao ao Brasil. Sempre ha visceralidade quando se ama.

Foram nestas experiencias que meu mundo realmente se abriu. As fronteiras ficaram diminutas a cada nova nacionalidade que chegava a minha vida cotidiana. Conheci gente do mundo inteiro, namorei estrangeiros, aprendi espanhol, cheguei a estudar grego, numa noite ia para uma festa da galera do Casaquistao e no dia seguinte a um jantar promovido por meu vizinho do Catar. E, olhem so, cheguei ate a trabalhar por um verao na Disney (nunca subestimem um desejo pueril). Misturei buchada com fois gras e sushi e fiz disto meu farto cafe da manha.

Depois de ja inserida na vida profissional, consegui fazer outras viagens para o exterior, e cada uma delas funcionava como uma descarga eletrica de alta voltagem na minha auto-estima e na concretizacao de sonhos nutridos ao longo de uma vida. Ainda nao rodei o tanto quanto gostaria devido ao binomio tempo e grana. Mas nao consigo pensar em portos permanentes. Ja cheguei a cogitar que isto poderia ser um sinal de fuga, mas depois de anos de analise, me dei conta que so consigo mesmo eh fugir do tedio de nao me locomover. Certamente tudo isto pode mudar quando os filhos chegarem. Ate la, continuo acreditando que a estrada eh sabia e que eh necessario tentar sugar o maximo dela, mesmo quando tudo o que se faz eh parar numa esquina e observar a vida passar. Porque ela passa rapido demais, nao conseguimos segurar o tempo, tudo eh volatil e fragil, ate a memoria do que ja foi um dia.