quinta-feira, 30 de julho de 2009

Memory lane

Um dos termos mais belos da língua inglesa para mim é memory lane, algo como "estrada da memória", usado geralmente para evocar o passado e suas lembranças saudosistas. Ontem fui conhecer a memory lane de Laredo. Decidi tirar a tarde para passear pelo centro histórico da cidade e senti-la mais de perto, conhecê-la a partir das suas artérias mais cheias de saudades, gravitar ao redor do seu cordão umbilical. O bairro onde moro é muito agradável, porém relativamente novo, com casas relativamente novas, um típico subúrbio americano (subúrbio aqui é onde a classe média alta se refugia da vida geralmente caótica dos grandes centros. Laredo não tem o caos das metrópoles, mas as famílias parecem querer se afastar mesmo assim).


O bairro histórico de San Agustin, mais precisamente a Plaza de San Agustin, é o marco inicial da cidade, fundada em 1755 como Villa de San Agustin de Laredo ainda durante a colonização espanhola no México. O pavimento de tijolinhos vermelhos permanece intocado por vários quarteirões. A plaza é uma pacata pracinha com cara típica de cidade de interior: um coreto no meio, jardins bem cuidados e uma igrejinha à sua frente. Ao redor também localizam-se diversos prédios históricos que perteceram aos primeiros moradores. Um deles é hoje o Museu da República do Rio Grande, que além de sede deste governo no século XIX, também foi a residência de um dos seus fundadores.

Em 1840, cerca de 20 anos após o México conquistar sua independência, três estados do norte --Taumalipas, Nuevo León e Coahuila -- segregaram-se por descontentamento com o governo centralista mexicano do ditador Santa Anna e criaram sua própria república federalista. Laredo, então, virou a capital da República do Rio Grande. Quando o exército centralista finalmente avançou sobre Laredo e derrotou os federalistas, Antônio Zapata (não confundir com Emiliano), líder da cavalaria da nova república, teve sua cabeça arrancada e exposta durante três dias para intimidar os oponentes. A República durou apenas 283 dias. De toda forma, Laredo orgulha-se de ter sido a única cidade texana a existir sob sete bandeiras: Espanha, França, México, República do Texas, Confederados, Estados Unidos e República do Rio Grande. Na plaza, todas estas bandeiras flamulam no exterior do museu e no hotel histórico La Posada.


Caminhando pelas ruas de San Agustin, a poucos metros das pontes internacionais que ligam o país ao México, sentia um misto de curiosidade e revolta. Curiosidade por tentar ver os detalhes daquilo que já foi um dia e revolta por ver a realidade daquilo que é hoje. A verdade é que, fora um pequeno trecho preservado localizado em volta da plaza, o restante do bairro é uma espécie de centrão popular onde os belos prédios históricos viraram depósito de bugingangas made in China para venda no atacado ou no varejo. Salvo algumas perfumarias e lojas de roupas e uma ou outra loja com os vestidos de gosto duvidoso de quinceañeras (debutantes de 15 anos, tradição ainda muito forte na cultura mexicana),quase todos os estabelecimentos vendem mares de lixarada cafona plástica e purpurinada. Quando a fome apertou, saí em busca de alguma lanchonete aconchegante com um pouco de alma, mas tudo o que encontrei foram filiais gordurosas de fast-food de galinha frita. Aquela descaracterização dos tempos modernos em pleno solo sagrado da história me tirou a fome. Foi a mesma sensação que tive quando vi uma KFC e um Taco Bell em frente às pirâmides milenares do Egito. Sou 100% a favor da modernidade, mas 0% a favor do tipo de modernidade baseada no consumo desenfreado de porcarias.

Parti então em direção à plaza, que havia conhecido em maio durante minha primeira visita à cidade. Ela permanecia exatamente igual, bonita e bem conservada. Várias pessoas descansavam nos banquinhos de pedra doados por famílias e instituições. A mesma plaza que, no passado, foi palco de celebrações de tribos indígenas após saquearem a cidade, recepções das tropas militares da coroa espanhola e, em 1855, uma batalha entre os grupos políticos rivais Las Botas e Los Guaraches. Me dirigi ao museu e percebi que eu era a única visitante. Perguntei ao simpático senhor da recepção quantas pessoas apareciam ali por dia. Ele disse, com cara de desolação, que às vezes nenhuma. Porém, falou com um certo orgulho que nem sempre foi assim, pois o museu já chegou a comportar 3.000 pessoas por mês nos tempos áureos do turismo. Ou seja, há não mais que cinco anos, quando a violência proveniente dos cartéis do narcotráfico do outro lado da fronteira não era tão pronunciada. As pessoas visitavam o museu em consequência de sua viagem ao México, mas o turismo foi fortemente afetado depois que sequestros, tiroteiros e até explosões de granadas passaram a ocorrer com frequência em Nuevo Laredo. Dizem que atualmente a violência diminuiu, mas a verdade é que as pessoas de Laredo sentem muito medo de cruzar a ponte.


Minha visita ao pequeno museu foi bastante informativa. Eu me deliciei com aquele mergulho no passado. A casa, construída em 1830 e expandida em 1861, ainda tinha o piso, paredes e vigas originais. Havia vários objetos expostos, como uma bandeira original da República do Rio Grande, armas do século XIX e uma representação dos aposentos, como a sala de estar, o quarto e a cozinha.

O quarto era uma representação do período de 1840 a 1880. Ao olhar para aquela cama, pensava se todas as 12 crianças criadas naquela casa tinham sido geradas ali. Me encantei com as lingeries, as sombrinhas e o sapato de mulher. Absolutamente femininos e encantadores.



Na cozinha, havia uma amostra de objetos de ferro facilitadores dos trabalhos das donas de casa, como máquinas manuais lavar roupa, engenhocas de fazer linguiça e batedores de manteiga. Os tataravós dos eletrodomésticos.

Quando terminei minha visita, uma equipe de um canal de TV de Nuevo Laredo se preparava para fazer uma matéria sobre o museu. Na lojinha, me dei de presente um livro de um autor local sobre sua viagem de canoa pelo Rio Grande, "The Tecate Journals". Para W, comprei um livreto sobre a história da organização dos advogados na cidade.

Saí e, guiada pela fome, finalmente encontrei uma lanchonete avulsa (não uma filial de restaurante gorduroso) bem simples a duas quadras dali. A atendente, uma senhora de cabelo ruivo endurecido por quilos de laquê e muita maquiagem nos olhos anotou o meu pedido de um taco pirata: carne de fajita, feijão refrito e queijo derretido enrolados numa tortilha de milho. Sustança para uma tarde cultural!

Satisfeita, sentei-me num banquinho em frente ao antigo Cine Plaza, já desativado porém ainda reluzindo o mesmo letreiro dos anos 40/50. Revezava entre ler meu livro recém-adquirido e observar os arredores e as pessoas. Estava feliz por ter tirado aquela tarde para ir à rua e quebrar minha rotina de ficar horas em casa no computador fazendo um projeto voluntário para uma empresa no Brasil. A rua é onde a vida pulsa, é onde o passado e o presente se consolidam, se entrelaçam e se confrontam. São bastantes especiais aqueles que ainda lutam para preservar a memória da cidade, pois como sabemos um povo sem memória é não apenas um povo sem futuro, mas é um povo de presente insosso também. Laredo me pareceu um lugar bem mais interessante após aquelas horas de imersão no seu legado histórico.

Certamente ainda há muito a ser feito. Existem vários prédios interessantíssimos semi-abandonados, como um velho hotel onde o ditador mexicano Santa Anna ficou hospedado a caminho da batalha do Alamo em 1836, a mais famosa batalha da Revolução Texana. Hoje o hotel parece um cortiço caindo aos pedaços. Toda aquela área poderia ser reformada e revitalizada, com a instalação de cafés, restaurantes típicos, galerias de arte e cinemas, por exemplo. Certamente o turismo local só iria se beneficiar, tornando-se mais independente da cidade vizinha mexicana. Mas como tudo nesta vida se resume a dinheiro, é necessário que algum empresário ainda veja o potencial turístico de "downtown".

Enquanto estava entretida com meu livro, um louco imundo e maltrapilho me pediu um dólar. Era alto, magro e gesticulava bastante. Respondi que não tinha dinheiro, mas ele gentilmente me ofereceu um pouco do seu suco de maçã de caixa. Falei que não queria, obrigada, mas ele insistiu. Respondi negativamente mais uma vez e fixei meus olhos no livro. O doido então partiu com sua caixa de suco na mão, risonho, falando suas doidices ao quatro ventos, mais um personagem a se perder nas ruas de memory lane.

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