terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Notas sobre o México

Desde quando visitei o país pela primeira vez em 1998, em Ciudad Juarez, fronteira com El Paso no lado texano-americano, o México exerceu um fascínio anormal sobre mim. Desde então estive duas vezes na Cidade do México e mais recentemente duas vezes em Nuevo Laredo, na fronteira mais ao sul. Caí de quatro por sua riqueza cultural, sua culinária original e curiosa, sua ancestralidade azteca, seu caos sem ordem, suas cores abertas, sua religiosidade latina, sua música mestiça, seu povo ao mesmo tempo encantador, submisso, explorado e bravo. O México é um país que sangra e não falo da violência que lhe toma almas diariamente na guerra do narcotráfico ou na pobreza das suas sarjetas. Sangra no sentido de levar alimento para meus órgãos, meus músculos, meus olhos, meu tato, meu paladar e meu cérebro, saciando minha fome vampiresca por cultura estrangeira.

Hoje, a menos de suas semanas de me distanciar fisicamente desta fronteira geográfica, edito aqui o relato que fiz para amigos e familiares quando visitei Nuevo Laredo pela primeira em 13 de maio de 2009:

Na quarta-feira cruzamos a fronteira para Nuevo Laredo. Por pouco não fui, pois de uns três anos pra cá brasileiros precisam tirar visto para entrar no México, devido à quantidade de brasileiros ilegais que entram nos Estados Unidos via o país latino. W. tem amigos no consulado mexicano, então pela manhã paramos por lá para checar os pormenores da minha documentação. O cara do consulado me perguntou o que eu queria fazer no México. Expliquei que queria comprar tequila e ele achou aquilo engraçadíssimo. Então esclareceu que eu poderia cruzar a fronteira sem problemas, só não poderia sair dos limites da cidade. Aproximadamente a partir do marco 26km ao sul de Nuevo Laredo há um checkpoint de imigração e o visto a partir dali torna-se obrigatório. Assim, no final da tarde, após ter parado num bar bem furreco em Laredo para tomar um trago gelado de Don Julio (uma excelente tequila para os não familiarizados), cruzamos o Rio Grande através da Ponte Internacional número 1. São duas as pontes que fazem a travessia Laredo-Nuevo Laredo. Preferimos ir a pé, para evitar o trânsito denso da ponte no nosso retorno. Um frio na minha barriga por voltar a pisar em solo sagrado.

Descobri que a melhor coisa de Laredo é Nuevo Laredo. O México sempre teve este poder alucinante sobre a minha pessoa. Me sinto viva, numa sensação de embriaguez que é muito maior do que a tequila que sempre me acompanha nas minhas idas pra lá. As pessoas daqui morrem de medo de cruzar a ponte, pois houve um aumento muito grande de violência na fronteira por conta dos cartéis do narcotráfico. Coisas tipo tacar fogo nos inimigos, sequestros, cortar cabecas e outras gentilezas. Devem ter aprendido com os hermanos cariocas. Logo que cruzamos a ponte, havia um tanque do exército mexicano cercado por soldados. Depois de oito anos de Rio de Janeiro, já tenho um PhD em violência urbana, então eu estava tranquila.

Quem nos acompanhou aquele tarde foi Tom, um grande amigo de W., um senhor de sessenta e tantos anos, cara de Papai Noel, lobista político, ex-executivo de empresas texanas de gás e petróleo que ja morou na Bolívia e no Peru, democrata liberal que trabalhou com W. na campanha presidencial de Obama, figuraça que nos anos 60 foi host por mais de uma vez de ninguém menos que Jorge Luis Borges quando ele visitou a Universidade do Texas em Austin. Descobri que o Texas inspirou Borges, levando-o inclusive a escrever um belo poema:

Texas

Aquí también. Aquí como en el otro
Confín del continente, el infinito
Campo en que muere solitario el grito;
Aquí también el indio, el lazo, el potro.
Aquí también el pájaro secreto
Que sobre los fragores de la historia
Canta para una tarde y su memoria;
Aquí también el místico alfabeto
De los astros, que hoy dictan a mi cálamo
Nombres que el incesante laberinto
De los días no arrastra: San Jacinto
Y esas otras Termópilas, el Álamo.
Aquí también esa desconocida
Y anciana y breve cosa que es la vida.



A primeira vista de Nuevo Laredo traz ruas apertadas, barraquinhas de comida por todos os lados, cabritos assados enfiados num pau na vitrine de um restaurante, lojas com letreiros pintados à mão com caligrafia bem amadora. Fiquei sabendo depois que homens falando baixinho ofereceram algumas ilegalidades a Tom e W.: Viagra, cocaína, marijuana. No, gracias. Circulamos rapidamente por algumas lojas do mercado de dois andares a poucas quadras da ponte à procura de vestidos mexicanos. Muitas cores, bordados, máscaras de luta livre, piñatas, crianças vendendo doces, pedintes...nossa América Latina em seu normal estado mas com cheiro forte de pimenta jalapeño. Paramos em vários bares bem hole in the wall (tradução literal: buraco na parede, ou em bom português, boteco fuleiro). Imediatamente cantores vinham atrás de nós, cobrando nada menos que cinco dólares por canção. Que iTunes que nada: a indústria musical deveria seguir o exemplo do México para fazer dinheiro! Mas eu quis nos dar aquele pequeno luxo e paguei um senhor de cara afilada para tocar "Las Golondrinas" no seu violino. Era lindo e ao mesmo tempo triste. Tentei me concentrar apenas na arte deste senhor, mas a verdade é que a sua cara de pobreza me desconcertava.

Um dos bares que paramos foi o Santa Helena, que não tem placa com nome do lado de fora por proibição da prefeitura e para desgosto do gerente do bar. Está cravado ali no centro de Nuevo Laredo há mais de 100 anos. Não chega a ser um botequim de quinta. Super escuro por dentro, com paredes repletas de garrafas de bebidas e retratos de Zapata, de uma loira gostosona estilo Baywatch, uma Maja e Los Tres Reyes, "los mejores cantantes de México", segundo o gerente do bar. Nas mesas, bigodudos mal encarados que não esboçavam sorriso algum. Pouquíssimas mulheres, apenas eu e mais duas. Os olhares voltados para nós, os únicos gringos, degustando as cervejas locais Tecate, Indio, Negra Modelo. Não sou cervejeira, mas como são deliciosas as cervejas mexicanas.


Nos fundos do bar, ao lado do banheiro mínimo, um altar com várias oferendas de pão, maçã e tequila para la Santa Muerte. Descobri depois que ela -- sim, a própria Morte com cara de caveira e cajado --é a padroeira dos narcotraficantes. Tom não me recomendou tirar fotos ali, mas W. explicou que eu era brasileira e imediatamente um rapaz novinho me acompanhou para tirar fotos da oferenda. O gerente do bar, quando soube que eu era brasileira, acionou a radiola de ficha que começou a tocar Roberto Carlos em espanhol "Amada amante/amada amante". E a vida pulsando, exatamente como deve ser.

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

Este mês de janeiro de 2010, logo após receber minha permissão para sair do país, fiz minha segunda incursão a Nuevo Laredo. Era um sábado frio de sair fumacinha da boca, diferentemente daquela primavera de derreter miolos de oito meses atrás. Cruzar a ponte era excitante, mas eu sentia o desconforto do medo. É uma coceira na boca do estômago. Eu já havia comido do fruto proibido, assistido ao noticiário local e nacional que intimida qualquer pessoa a querer passar para o outro lado. Nuevo Laredo é retratada como um sanguinolento palco de guerra onde sua vida pode ir embora na primeira esquina. Desta vez éramos apenas eu e W. e estávamos de carro. Eu consigo me mesclar bem com a população local, mas W., com sua pela muito branca, seu cabelo loiro e seus olhos verdes é o gringo no seu mais comum estereótipo. Eu amava estar novamente em solo mexicano, mas uma eu medrosa queria que as horas passassem rapidamente para que eu já estivesse de volta na "segurança" da minha casa texana. Eu queria ser um pouco mais ignorante naquela ocasião.

Voltamos ao mercado. Nada de calefação nas lojas. Minhas mãos e pés congelavam. Compramos alguns vestidos e objetos de decoração: uns lustres em forma de estrela e lindos bichinhos de madeira de Oaxaca para o apartamento novo. Paguei 30 centavos de dólar para fazer xixi. Um senhor fazia montinhos de papel higiênico e recolhia o dinheiro. O banheiro era limpinho. Na América Latina é possível fazer dinheiro com o gerenciamento de banheiros. Minha mente sob o efeito do medo imaginava que um tiroteio começaria naquele mercado a qualquer minuto, eu e W. nos escondendo atrás dos vestidos, pânico generalizado. Mas não havia vestígios de nada daquilo. Apenas uma calma reinante, vendedores cordiais, nem mesmo um pedinte sequer.

Nas ruas as barraquinhas de mariscos anunciavam sopa de polvo. Já fui mais corajosa: dispensei. W. me levou para almoçar no El Rincón de Veracruz, um restaurante pequenininho e super simples mais para dentro da cidade. Como lembrava Juazeiro da Bahia aquela Nuevo Laredo de ruas apertadas. A comida do Rincón era deliciosa. Pedi umas tortillas de milho macias cobertas com creme de feijão, linguiça defumada picadinha e queijo fresco. E claro, um creme de pimenta verde por cima para esquentar o corpo naquele dia frio. Sou devota do gosto confortante das tortillas de milho. W. estava inseguro em deixar o carro longe da nossa vista. Eu também. Mas dentro do restaurante só chegavam famílias e crianças. De perturbadas ali, apenas as nossas mentes americanizadas.

Aguardamos mais de uma hora na fila da ponte para entrar no Texas. Ao meu lado, uma gigantesca bandeira mexicana flemulava com sua águia segurando uma serpente pelo bico. Espero ter esta destreza para enfrentar minhas paranóias e pensamentos peçonhentos. Não sei quando retornarei àquele país, mas tomara que não tarde. Há sempre um fôlego renovado que emerge daquela terra que tempera meu juízo.

Um comentário:

  1. Querida Juli,

    novas fronteiras agora, a vida se renova, não é o que nos ensinam os mailings???
    W ainda vai dançar forró ou, menos que não queira ou não aprenda, vc tem sua lembrança e sua saudade. Besos brasileños...
    Mamacita

    ResponderExcluir

Eu adoro um comentário sobre as minhas coisices. Escreve, escreve!