quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Descongelando

Esta semana fará dois meses que aportei no hemisfério norte. Não chega a ser um marco para comemoração (apesar de crer veemente que basta ter vontade para abrir um espumante), porém na quarta-feira, dirigindo sozinha por uma larga avenida por onde eu jamais havia dirigido, senti primeiramente a deliciosa sensação de estar começando a me familiarizar com os meus entornos. Logo em seguida, algo maior que me fez sorrir enquanto aguardava o sinal abrir: a sensação de estar começando a descongelar, a vencer uma insegurança e resistência que se apoderavam de mim. O mais interessante é que foi necessário a chegada da minha mãe em temporada de férias para me dar conta disto. E para ajustar meu termostato. Estas mães que nos fazem nascer e renascer tantas vezes ao longo de uma vida.

Já morei em pequenas, médias e grandes cidades. Já me internei sozinha em hospital queimando de febre proveniente de infecção renal (e raiva, no nível emocional); cozinhei banquetes para mim mesma; viajei sozinha por montanhas nevadas; me embebedei até vomitar num bar de tango sem conhecer uma alma porteña; dei palestra em universidade americana para mais de 50 coronéis estrangeiros sobre "o papel da mulher na sociedade moderna"; rebolei o tchan umas quinhentas vezes; amei algumas; fui traída e chorei convulsivamente por meses; escalei um vulcão ativo; aprendi depois de um incêndio no meu apartamento que não levamos nada da vida a não ser memórias; cantei em banda de rock; tomei chá de rabo de cascavel; e pela terceira vez faço uma mudança para os Estados Unidos, lugar que já me acolheu por mais de seis anos no passado. Entre estas e outras, acumulei estoque mais do que suficiente para me virar sozinha, enfrentar a vida ou qualquer outro termo sinônimo. Ainda assim, confesso que travei assim que pus os pés em Laredo.

Medo de abrir as gavetas da minha nova casa. Medo de revirar as caixas empilhadas na garagem. Medo de andar pela grama verde e sempre úmida do jardim. Medo de pegar o carro. Medo de abrir algumas persianas. Medo de conhecer pessoas. Medo de embarangar. Medo de mudar o trajeto de casa ao supermercado. Medo de virar inútil e medíocre. Um medo que chegava mais ou menos da hora do jantar, se escondia temporariamente durante uma viagem de final de semana e reaparecia durante o banho. De repente, todas as barreiras e fronteiras já desbravadas pareciam placebo.

As razões eram óbvias e eu conseguia racionalizá-las. Cá estava eu começando algo completamente novo, um casamento de verdade, para valer, com direito a assinatura em cartório e o compromisso de formar família. Por mais liberal que seja a minha cabeça, havia toda uma instituição por trás da minha chegada a estas terras. Cá estava eu sem trabalho, com todo o tempo do mundo nas mãos -- o tempo que eu sempre quis, mas o que fazer com ele? Como aproveitá-lo para que não se perca em tardes vazias arrancando cutículas e enchendo a cabeça de gordas minhocas? Como otimizá-lo? Quais eram mesmo aqueles planos que eu tinha há anos e queria colocar em prática? Até muito pouco tempo atrás eu me jogava no burburinho carioca com vista para Copacabana, na correria da vida corporativa, nas festas repletas de pessoas interessantes, viajadas, globalizadas. Então caio neste lugar tão singular e tão árido de vida cosmopolita. Cá estava eu tendo que começar do zero, fazer amigos e me fazer ouvir.

W tem sido super amigo e companheiro, me incentivando a ser sempre a mulher "destemida" e curiosa que ele conheceu. Se a vida conseguiu me dar um pouquinho de sabedoria, uma delas é que não podemos e não devemos nunca jogar nossas amarras e frustrações no outro. As paranóias estavam na minha cabeça e era necessário agir. Já tive alguns momentos de paralisia na vida, portanto atualmente é mais fácil diagnosticá-los e tomar medidas profiláticas.

Primeira dose: numa quarta-feira qualquer no meio da tarde, abra uma garrafa de chardonnay e faça um brinde para lembrar-se que de tempos em tempos a vida pode ser vivida sem relógio e sem burocracias. É incrível a capacidade que temos de nos burocratizar mesmo quando em período sabático. Em seguida, mude os móveis de lugar. Mude novamente só para pirraçar seu próprio senso de organização. Compre para o banheiro de hospédes um sabonete líquido premium mesmo contra a vontade do seu cônjugue (e mesmo que o dinheiro seja dele). Também jogue fora aquele abajur de cetim cor-de-repolho hor-ro-roso que a ex dele deixou de lembrança. Catuque as caixas intocáveis e descubra lindos objetos de viagem que seu cônjugue nem se lembrava mais que existiam. Dê um jeito de, aos poucos, ir tirando da sala aqueles quadros que você jamais compraria, mas para não magoar seu querido, pregue-os num quarto que você quase nunca entra. E, finalmente, pegue o carro e comece a conduzir por ruas nunca antes navegadas. Perca-se. Deixem que buzinem atrás de você. Entendo: não existe receita de bolo para a vida, mas para mim funcionou.

E onde é que entra Dona B, a progenitora? Tirando o chardonnay, ela catalizou cada uma dessas ações. Queria arrumar a casa para tê-la aqui, recebê-la com um bom sabonete, comprar-lhe um hidratante de mãos para aliviar este ar tão ressacado. Em doses homeopáticas, fui também me reidratando de mim mesma, deixando escapar a essência que volta e meia quer escorrer pelo ralo. Até entrei em aula de violão pela primeira vez na vida. A casa que foi me dada de braços tão abertos foi ficando mais minha. As impressões digitais estão agora mais visíveis. Mas ainda há trabalho a ser feito.

Observar minha mãe também tem sido teurapêutico. Em menos de uma semana já havia revirado todas as caixas, todos os closets, aberto todas as portas, percorrido o jardim de cabo a rabo e colhido flores, fazendo delas belos arranjo para a sala (como eu não pude pensar nisto antes?). Entrou em aula de desenho, me deixou exausta caminhando no supermercado por três horas seguidas, abriu persianas que eu não ousava tocar, pediu para usarmos lâmpadas mais fortes nos quartos, questionou se o sol nasce mesmo no leste e se põe no oeste, mandou eu comprar meias novas para W, criticou a quantidade de tempero da minha comida, me fez ter mais simpatia pelas feiosas cadelinhas de pêlo áspero Sadie e Precious, as quais ela denominou carinhosamente de Arame e Araminho.

Estas mães que nos parem e que não nos deixam parar. Quando menos me dou conta, foram doses cavalares de curiosidade e ânimo. Um mergulho profundo nas minhas raízes mais embrionárias para não dizer o óbvio. Aguardando aquele sinal vermelho no cruzamento das avenidas McPherson com Lamar, abri um sorriso largo e aumentei o volume do rádio. Abaixei os vidros, me livrando do ar seco e gélido do ar-condicionado. Precisava de calor e de sauna. Meu termostato começava, finalmente, a voltar ao clima tropical.

Um comentário:

  1. Olá, menininha

    Leio vc,leio Laredo e vejo como dona E vasculha profundezas paradoxalmente tão na superfície. Seu senso de praticidade é impressionante: simplifica, reduz, direciona e vai.
    Mas entendo suas amarras, Juliana: nessas terras nada de seu, a resistência tem prazo de validade mais longo; tudo soa alheio.
    Eu vivi em estado de provisoriedade por muitos anos aqui, e se digo hoje que me acostumei,por um lado, por outro sou Drummond: "Quando vim de minha terra [...] não vim, [..] ai de mim nunca saí [...] Lá estou eu enterrado, por baixo de falas mansas, por baixo de mim mesmo [...]".
    Mas vamos em ondas.
    Beijos para dona E (mais de 30 anos de conhecimento, mais de 25 de amizade e 20 de comadragem, e não consigo tirar as 3 sílabas primeiras.)
    beijoca.
    Irene

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