terça-feira, 21 de julho de 2009

Dona Amélia, a diarista

Na primeira vez que conheci Dona Amélia*, numa manhã lareirense de maio, eu ainda tinha o status de namorada-visitante do novo lar. Ela me reconheceu pelas fotos que meu então namorado, atual noivo, havia colocado em diversos lugares da casa. Nem por isto, deixou de me olhar desconfiada. Eu que só havia visto diaristas mexicanas em filmes, estava ali em contato com um exímio exemplar. Com sua voz aguda e fala acelerada, não proferia uma palavra em inglês. Passou a tarde limpando a casa e trocamos apenas rápidos sorrisos típicos de quem quer apenas fazer um contato para mostrar educação. Até o momento em que recolheu minhas calcinhas da máquina de secar roupa.

"Mira, que chiquititas...son para momentos muy especiales, no?" Eu havia esquecido de guardá-las. Não queria passar pelo constrangimento de dar minhas calcinhas para ela naquele momento. Aprendi que estas coisas a gente só faz quando já se tem alguma intimidade -- ou quando pelo menos se reside no lugar, não quando se está de férias. Diante do seu comentário, apenas sorri um tanto constrangida, e olha que não sou de me constranger com estas coisas. Porém ela não se deu por vencida e ao receber apenas o meu sorriso como resposta, fez uma cara que misturava malícia com reprovação. "Que pequenitas, muy pequenitas. Veo que son para momentos muuuuuy especiales. Sí, momentos especiales con su señor." Então percebi que ou eu me deixava constranger ou contornava a situação. Afinal, era o momento decisivo de mostrar respeito, já que muito em breve eu seria a "señora de la casa." Olhando firmemente para seus olhos, respondi em espanhol: "não, senhora, estas são as calcinhas que uso diariamente. As calcinhas sem graça. As para momentos especiais são beeem menores do que estas." Surpresa com minha resposta de fala firme, ela arregalou seus olhos redondos atrás dos óculos e apenas deu um sorriso meio desdenhoso, mas satisfeita por não ter escondido sua alfinetada inicial.

Dois meses depois, Dona Amélia voltou à casa para mais um dia de faxina. Abriu a porta principal às 9h da manhã e levou um susto ao me ver. Eu a recebi com um acalorado sorriso e lhe contei a novidade do meu status oficial de noiva. Sua alegria foi imediata: "Que bueno! Ahora el señor de la casa "tiene una señora!". E a partir daí, Dona Amélia se mostrou uma verdadeira tagarela. Uma simpatia de mulher, mas uma tagarela sim. Durante todo o dia, tive que escutar o quanto era maravilhoso eu estar aqui, pois um homem sem uma mulher não vale nada. E que eu escolhi um homem muito bom, sem vícios. Ah, porque o outro rapazinho que aluga um quarto aqui tem muitos vícios. "Que vícios, Dona Amélia?". "Bueno, alcohol e un cigarrillo de marijuana". Pobre roomate Ted*. Ela deve ter entrado em seu quarto em alguma manhã de ressaca. Ainda ontem eu conversava sobre drogas com este cara gente boa, e até onde saquei, faz meses que ele não sabe o que é um baseado.

Durante a manhã eu me dividi entre um trabalho no computador e o preparo do almoço. Ao me ver temperando a galinha, não hesitou: "mas que maravilha, você sabe cozinhar! Quero aprender, porque nem eu sei cozinhar assim, você vai ter que me ensinar! Ah, como é sortudo 'su señor', pois tem uma mulher que cozinha comida de verdade. Vai ficar gordinho, tenho certeza". E dava uma risada aguda de satisfação. Entre um risada e outra, Dona Amélia perguntou se eu queria ter filhos. Indiquei que sim, mas que gostaria de esperar um pouco. "Ah, claro, esperar a fase da lua de mel passar", ela soltou. Foi quando então me contou uma história que mal acreditei.

Dona Amélia ficou grávida um mês após casar aos 19 anos. Seu marido tinha 22. Até aí tudo bem. Mas disse que faltando uma semana para o bebê nascer, ela ainda não sabia por onde a criança ia sair. Ninguém falou para ela. Em suas palavras, disse que até a noite de núpcias nenhum homem havia "tirado suas calcinhas" e que nenhuma mulher da sua família ou amiga jamais lhe ensinou nada. "Mas e ele, sabia?", perguntei. "Claro, pues. Era hombre." Intrigada com aquela história, quis saber mais. De onde era ela? Em que ano foi aquilo? Guadalajara, México, 1964. Os anos 60 fervilhando e Dona Amélia mergulhada na ignorância -- palavra, inclusive, que ela mesma usou para descrever sua situação. Mais uma pergunta minha: "e para sua filha, você contou o que ela tinha que fazer?". Sua resposta foi enfática: "não. Ela estudou aqui neste país (EUA), então eu não precisava dizer nada."

Eu comecei a enrolar uns brigadeiros que daria como agradecimento a um amigo enfermeiro do meu noivo que me ajudou quando fiquei doente assim que cheguei à cidade. Dona Amélia ficou encantada com os docinhos e deu novamente muitos vivas à minha habilidades culinárias. Então soltou mais esta: "aqui as coisas são muito mais liberais. Ou melhor, libertinas". E começou a proferir sua visão de que os tempos passados eram melhores, pois as mulheres se davam respeito e não competiam para ver quem dormia com mais homens. Falei para minha filha que se quisesse namorar, podia. Mas só se o rapaz viesse pedi-la para mim em namoro. Homem que não fizesse isto, é porque só queria tirar vantagem." Às 17h sua filha veio buscá-la e ela terminou o serviço.

É, Dona Amélia, outros tempos. Hoje a gente coabita antes de casar. Faz test-drive pra saber se funciona. Eu estou gostando muito. Mas soube através de minha mãe que há menos de um mês meu noivinho pediu para meu pai se podia casar comigo. É Dona Amélia, ainda bem que o tempo não varreu por completo algumas tradições.

*Nomes mudados para preservar a identidade dos personagens.

2 comentários:

  1. Amiga, adorei seus contos! Minhas tardes ficaram mais divertidas. Um beijão.

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  2. Ju, descobri seu blog no orkut!!! Estou adorando suas histórias, tens o dom.... parece que estamos vendo a situação. Parabéns!! Sorte nessa fase e continue Desbra vando estas terras amaericanas. bjão

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Eu adoro um comentário sobre as minhas coisices. Escreve, escreve!