quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Vestido de noiva

Por mais independente, bem resolvida e despojada que seja uma mulher; por mais descolada, mais pra frente e mais "muderna" que seja uma mulher; por mais mulherão, mais furacão, mais "tô nem aí" pras instituições que seja uma mulher, no fundo do seu coraçãozinho pulsante ela carrega uma criatura que só usa vestido cor-de-rosa e suspira com pestanas apaixonadas. Esta sósia ao avesso se chama mulherzinha. Uma mulherzinha que sonha com o príncipe encantado na hora de dormir, mesmo que sua plena e intensa vida amorosa a tenha feito compreender que assim como dentro de toda mulher existe uma mulherzinha, dentro de todo homem existe um sapo, muitas vezes um baita dum cururu grande, verde e bizarro. Esta mesma mulherão-mulherzinha que descobriu a intrínseca relação entre humanos e anfíbios (no caso feminino, a perereca é o elo perdido) sonha, desde os tempos de menininha, com aquele dia, o grande dia, o supostamente maior dia da sua existência: aquele em que ela olha nos olhos do seu príncipe-sapo e, explodindo de emoção, diz "sim, serei sua para o resto de nossas vidas." Mas antes de chegar nestes finalmentes, teve um outro detalhe que ela não deixou passar desapercebido: o vestido de noiva. Eis aqui um breve relato do meu momento mulherzinha.

Foi sábado passado e fazia um dia lindo, quente e úmido. Numa cidade onde não há nada culturalmente interessante para se fazer, o que se faz? Vai às compras. Saí de casa para uma breve sessão de tortura, sabendo que eu não poderia gastar: apenas para olhar, fazendo as vezes de consumidora inteligente que dificilmente sei ser. Perambulando pelas lojas do shopping, pelos infinitos balcões de maquiagem e prateleiras de sapatos, me dei conta que me casaria dali a menos de um mês. Já estava quase conformada com o formato burocrático do que seria a minha boda: uma visita ao cartório local, uma troca de votos de cinco minutos e que vivam felizes para sempre. A minha mulherzinha já estava morrendo sufocada de tédio com falta de gliter na veia. Parei para um café e a cafeína teve um efeito ressucitador: "não me assassine. Procure um vestido. Um vestido de noiva."

Flasback. Lá nos idos dos anos 80 eu, pirralha, olhava revistas de noivas e procurava pelo modelo ideal. Era uma época de mangas bufantes, horrendas, noivas à la merengue de limão. Achei um tomara-que-caia perdido entre as páginas e fiz ali minha escolha. Vi pela primeira vez que havia vestidos que não eram brancos, mas perolados. Gostei, mas a minha mulherzinha-tradição dizia que para casar, só se fosse de branco. Mesmo que fizessem troça com o fato de casar de branco. Cresci numa terra machista, onde virgindade ainda era trunfo, onde homens e mulheres iam aos casamentos e cochichavam maliciosamente que aquela noiva nunca deveria ter se casado de branco. Ainda: fui criada por uma mãe moderna que dizia que vestido de noiva era algo cafona, coisa de festa a fantasia. Cresci com amigas bem mulherzinhas, mas também com amigas modernas que abafaram suas mulherzinhas e abraçaram a máxima que vestido de noiva é brega. E finalmente: nunca entendi por que minha mãe comprava aquelas revistas, afinal ela não apenas achava vestido de noiva coisa cafona, como também já estava casada há tanto tempo. Minha mãe que casou no cartório de botas de cano alto, saia plissada xadrez, blusa de manga comprida e lenço de seda na cabeça. Quando pequena achava um horror, mas hoje acho o máximo. Mas foi preciso chegar o momento de eu comprar o meu vestido para me dar conta que, como ela não se casou dentro de um, sua mulherzinha certamente aparecia como noiva-fantasma e pedia oferendas em formas de revistas.

Comecei a entrar de loja em loja procurando um vestido branco. Um vestido branco, curto e moderno. Um vestido que eu pudesse usar depois, que não tivesse cara de festa a fantasia. Um vestido sóbrio porém sexy. Até pouco tempo atrás um editorial da Marie Claire dizia que branco era o novo preto. Mas certamente esta moda não chegou aqui na fronteira, muito menos nesta entrada de outono repleto de cores escuras. Até achei um perdido numa arara nos fundos de uma loja, mas o tecido era ruim, o corte era ruim, tudo era ruim e eu mal conseguia respirar de tão apertado. Comecei a mudar de idéia e a achar que meu vestido de noiva seria vermelho. Por que não? Minha mulherzinha-libertina começava a dar pulos, golpeando a mulherzinha-tradição.

Flashback. Sou de uma cultura obsecada por casamento, por tradições rígidas para certos ritos de passagem e, consequentemente, pelos vestidos que fazem parte destas tradições. Eu não tive festa de quinze anos. Nem baile de debutantes. Minha mãe achava cafona. Minhas amigas mais próximas achavam cafona. Eu também achava cafona, mas minha mulherzinha-tradição pestanejava apaixonadamente em segredo com aqueles vestidos de princesa. As aniversariantes e debutantes trocavam até três vezes de roupa na mesma festa. Nos meus quinze anos fui comer pizza trajando um conjuntinho de malha roxo colado no corpo. Nunca vou me esquecer daquele vestidinho. Não porque eu fosse louca por ele, mas porque no fundo ele foi o substituto do vestido branco que eu nunca tive.

Circulei o shopping inteiro. Havia uma última loja, uma enorme loja de departamento para entrar. Resolvi ir embora. Porém, a alguns passos dali, o resto da cafeína que ainda circulava no sangue me mandou dar meia volta volver. Um sexto sentido em ação. E eis que no lado esquerdo da escada rolante do segundo andar da Dillard's, eu o encontrei. Ele. O vestido. Tecido maravilhoso, corte impecável. Simples, elegante, sexy e jovial. De marca, BCBG Max Azria, a um preço excelente, "com 20% de desconto somente até amanhã se você preencher esta ficha cadastral." E ainda havia um modelo no meu número.

Enquanto o atendente foi buscá-lo, lembrei de um programa na TV que mostrava noivas comprando seus vestidos. Noivas felizes, nervosas e ansiosas com champanhe na mão escolhendo o vestido que usariam uma única vez nas suas vidas. Lembrei de todos os filmes e séries de televisão com cenas de noivas escolhendo seus vestidos. E senti uma vontade enorme de poder compartilhar aquele momento com as minhas amigas, com a minha irmã, com a minha mãe. Contudo, não deixei a melancolia me dominar. Lembrei também que praticamente durante toda a minha vida adulta, estive sozinha enquanto fiz minhas compras de roupas. O atendente chegou. Experimentei o vestido. Ele fechou o zíper nas costas. Ele era gay e fiquei feliz por isto. O caimento ficou perfeito -- verdade, um tantinho de nada apertado no peito, mas não visivelmente apertado. Ele era meu, eu sabia. O vestido de matalassê acetinado de cor perolada com flores aplicadas no busto e laço preto na cintura. Curto. Super curto. Nada de superstições com cores, nada de puritanismo, por favor. Minha mulherzinha-moderna estava embriagada de felicidade. Liguei para o noivo: "honey, achei." "Hum, que bom. Quanto?" "US$ X". "OK. Pode vir aqui em casa buscar o cartão". Minha mulherzinha-tradição quis que o noivo pagasse pelo mimo. E a mulher dona-de-casa que já compreende os hábitos de compra do seu futuro marido se surpreendeu com o fato de ele não ter hesitado nem por um momento sequer.

Pedi ao atendente para separar o vestido, enfatizando a cada três palavras que era o meu vestido de casamento. Meu-vestido-de-casamento-OK? O simpático atendente disse que eu não precisava me preocupar. Saí do shopping flutuando. No carro, a caminho de casa, ou melhor, a caminho de buscar o cartão de crédito, liguei o som a toda altura e cantei cada música com toda a força dos meus pulmões durante os 15 minutos de viagem. "Minha pequena Eva, Eeeeeeva, o nosso amor na última astronave, Eeeeva (...)", "E pra vocês eu deixo apenas o meu olhar 43, aquele assim (...)". Eu estava histérica e mesmo que aquelas letras não fizessem qualquer sentido, aquela foi a trilha sonora da minha radiante felicidade.

No fundo, eu sabia que não era apenas o vestido. Era ele também, mas não ele somente. Era o rito de passagem. A evolução rumo a esta etapa que eu nunca achei de fato que fosse o maior dia na vida de uma mulher, e até duvidei se fosse acontecer um dia comigo. Havia tanta coisa para se fazer nesta vida; casamento era apenas uma consequência, um acaso ou mais uma possibilidade. Continuo achando. Mas minha mulherzinha anda bem sorridente estes dias. Ainda: a partir do vestido, decidi mudar radicalmente o formato de casamento em cartório. Não à burocracia, sim ao gliter! Mas esta história eu deixarei para depois.

Momentos mais tarde, já chegando em casa com o vestido em mãos, pedi para W fechar os olhos enquanto eu escondia o mimo no closet. Minha mulherzinha-mulherzinha se deixou levar por superstição: nada do noivo ver o vestido até o dia do casamento. Eu estava feliz. W estava feliz. Ele sabe que tem certas coisas que não se deve nunca negar a uma mulher. Meu sábio príncipe-sapo.

10 comentários:

  1. Juli, isso valeu por muita sessão de psicanálise.
    Vc se mostrou, se achou... Quero ver este vestido!
    Bjs
    mommy muderninha

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  2. uauuuuuuuuuuuuu
    Tou louca para ver também!!!!!!!!!!!!!
    È óbvio, a gente nega mas essa mulherzinha não some NUNCA! KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK
    bjsssssssssssss

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  3. Julizinha,

    Que bom poder transitar entre a mulher tradicional e a moderninha. Quem nos impede? Lá fora? Certamente mais o entorno e nossa própria cabeça, buscando modernidades que necessariamente não precisam ser modernas, se ainda não chegamos lá.
    Vale buscar-se, reconhecendo sua própria raiz.
    Adorei o texto.
    beijão.
    Irene

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  4. Ju!!!! Adorei!!!! Mal pisquei, do começo ao fim.... até me emocionei aqui (mas tive que disfarçar e fingir que um grão de areia caiu no meu olho, acho que foi meu lado "mulherzinha-mulherzinha " se pronunciando...) :)
    Beijão,
    Hercília

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  5. Adorei Ju, depois quero ver as fotos heim... Seu lado mulherao e seu lado mulherzinha sao ambos lindos e autenticos... Parabens e felicidades ao casal... Adoramos recebe-los aqui!
    Beijao, Mari

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  6. um grao de areia tambem caiu no meu olho enquanto lia, que coisa ne...!! ;-)

    mergulhe na vida nova, querida, como voce sempre fez! e com muito glitter!!!!!!!

    te mandei um email.
    Clara

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  7. Ju!!!
    Minha Pequena Eva é sensacional!!!!! Hahahahaha... ouço algumas vezes e faz parte da trilha sonora baiana da minha vida carioca. Adorei o texto, quero ver as fotos todas! Que dia é o evento? Beijo, nega!

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  8. Sobrinha!

    Adorei o texto, que bom que vc não sufocou sua mulherzinha, lembrei-me de uma ocasião em que vc, ainda menina, queria comprar uma Barbie de vestido de noiva, mas a Bet achou cafona e vc acabou comprando outra.
    Aí, querida vai fundo, seja feliz!
    Beijos,
    Silvia

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  9. ju querida estiu nesse momento passando o feriadao do dia das crianças em teresopolis e parei para ler alguns blogs. saiba que o seu sempre faz parte das minhas leituras. queria te confessar - caiu um glitter no meu olho. estou muito emocionada.ainda bem que vc nao sufocou sua mulherzinha. sensacional. saudades, beijos carol jesus.

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  10. Ahahahahah!!!!!!! Essa do cururu grande, verde e bizarro foi o máximo. Fui às gargalhadas... Simplesmente maravilhoso esse texto!
    Bjão

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Eu adoro um comentário sobre as minhas coisices. Escreve, escreve!