quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Dia da Carreira na high school (e algumas considerações sobre o trabalho e uma vida ordinária)

Na semana passada fui convidada para contar as delícias de uma carreira em marketing para cinco turmas de formandos no Dia da Carreira da United High School em Laredo. O convite chegou como um suco concentrado de açaí com gengibre na veia que trafega diretamente ao meu ego, levantando meu ânimo de dona de casa ao me fazer voltar à minha personagem eu-profissional. Já estava até esquecendo a temperatura daquele friozinho na barriga antes de uma apresentação -- e olha que já fiz tantas, quase sempre de sucesso, mas também já fiquei à beira de levar tomates da platéia. Naquela manhã fria e molhada de um outono que chegou tarde, diante de estudantes adolescentes que ainda têm a vida inteira pela frente, eu refleti em silêncio sobre minhas escolhas profissionais, meu atual momento de desemprego enquanto aguardo uma licença para trabalhar e o que é que eu farei com o resto da vida inteira que também tenho pela frente.

O convite partiu de uma amiga brasileira que é professora desta escola pública, situada num prédio recém-construído que custou US$ 57 milhões. Só a estátua de um longhorn, o boizão de mega-chifres símbolo do Texas e da escola, custou US$ 110 mil. Com uma estrutura física de fazer cair o queixo -- salas altamente equipadas com computadores e audiovisual, biblioteca gigantesca repleta de desktops, academia física de primeira linha, aulas de culinária com cozinha industrial, entre outras amenidades -- era certamente melhor do que a maioria das universidades públicas que já visitei no Brasil. Certamente melhor do que a UFPE quando lá estudei em 1996, onde mal havia máquinas fotográficas para as aulas de fotografia. Mas como em terra de cego quem tem um olho é cego também, minha amiga professora da United High School conta que a hipocrisa local não permite, por exemplo, que os estudantes tenham aulas de educação sexual -- a pedido dos pais, a propósito. Em pelo menos uma das suas turmas há três garotas de menos de 17 anos que já têm filhos. Os professores são instruídos a não tocarem no assunto. Aulas sobre drogas são permitidas, inclusive há um senhor autorizado a andar com uma maleta cheia de exemplares das drogas mais consumidas instruíndo os estudantes a manterem-se longe delas. Vá entender.

Como grande perfeccionista que sou, preparei apresentação de PowerPoint, busquei exemplos de produtos e ações com os quais os estudantes se identificassem e treinei minha fala por diversas vezes, mentalizando uma sala repleta de alunos interessadíssimos no que eu tinha a lhes dizer. Meu marido tirou o maior sarro de mim, me chamando de teacher's pet, ou "bichinho de estimação do professor", apelido muito comum por aqui para quem é estudante certinho e faz amizade com professores. Reconheço, sou bem geek mesmo, vulgo CDF, e até hoje mantenho contato com alguns professores da universidade onde me formei.

Havia vários profissionais naquela manhã fazendo visitas de sala em sala: advogados, policiais, bombeiros, pastores de igreja, médicos e até onde sei, apenas eu de marketing. Também apenas eu utilizando PowerPoint, mas e daí? Tenho certeza que me diverti mais do que qualquer outro palestrante convidado e os estudantes mostraram-se super interessados, fazendo várias perguntas. Exceto por uma aluna que queria cursar faculdade de marketing, nenhum estudante tinha noção da disciplina. Gostei de me ver exercendo aquele papel professoral, passando adiante um pouco do conhecimento que adquiri ao longo de 10 anos de carreira. Me fez até repensar que tipo de emprego vou procurar quando for chegada a hora. Se eu pelo menos consegui motivar um aluno que seja -- nem falo necessariamente para a profissão de marketing, mas para ingressar na universidade, já que o índice de alunos que completam o high school em Laredo é de apenas 50% -- eu serei eternamente grata por ter tido aquela chance de conversar com as turmas. É calmante e acalorada a sensação de ajudar alguém que precisa de orientação. Um garoto perguntou se eu gostava do que faço. Respondi que sim e tentei ser o mais convincente possível (acho que consegui), sem o cinismo de quem já viu muito ao longo dos anos, exaltando o dinamismo de uma área que está sempre se modificando para melhor atender às necessidades e desejos dos consumidores que todos somos. Mas aquela simples pergunta me trouxe algumas reflexões.

Aprendemos que o trabalho enaltece o ser humano. Até aí, verdade. Os aprendizados da jornada profissional de fato contribuem para o nosso crescimento pessoal. Precisamos produzir, criar, e o trabalho nos traz esta possibilidade. Nasci num meio proletário-classe-média, ainda que um proletariado intelectual que usava o cérebro para trazer para casa o arroz e feijão de cada dia. Entre os valores aprendidos na infância estavam o de que o trabalho é honrado e que deve-se trabalhar para ganhar o seu. Eu e meus irmãos fomos ensinadas a termos ambições e a sermos financeiramente (além de emocionalmente) independentes. Eu e minha irmã fomos doutrinadas especificamente a jamais dependermos de homem algum. Valores que certamente passarei adiante para meus descendentes. Ao mesmo tempo, cresci com aquele desejo nutrido por 99,99% dos humanóides de quem sabe um dia eu ganharia tanto dinheiro a ponto de não precisar mais trabalhar, ou de apenas fazer projetos quando me desse vontade, sem que minha existência física neste mundo dependesse deles. Porque convenhamos, para a maioria de nós que trabalha para sobreviver, por mais que se goste da profissão e do trabalho que se escolhe a verdade é que no fundo é trabalho. Trabalho oposto a lazer e descanso. Trabalho para onde temos que nos deslocar de segunda a sexta, enfrentando ônibus, metrô e trânsito e passando mais tempo com seus colegas de trabalho do que com sua família e amigos. Como a maioria das pessoas do meu círculo de amizades, escolhi até quatro meses atrás labutar pegando no batente em horário comercial, mas quase sempre passando da hora sem ganhar hora-extra por isto. Ironias a parte, eu deveria inclusive ficar feliz por ter ganhado uma promoção para gerente e, portanto, deveria fazer hora extra quando possível sem ganhar um centavo a mais por isto, pois era "cargo de confiança". Doei corpo e alma para trabalhar em empresas onde, com o salário que eu recebia -- ainda que considerado um bom salário para padrões brasileiros -- não teria condições de ser compradora dos produtos que eu mesmo vendia. No passado isto já rendeu revoluções, mas hoje calamos a boca devivo às outras amenidades que conseguimos com o fruto das nossas noites mal-dormidas e das poucas horas diárias dedicadas ao lazer (simplesmente pela total impossibilidade de se ter tempo livre com frequência, uma vez que da hora que se levanta pela manhã em função do trabalho até o momento de se chegar em casa à noite já se passaram entre 13 e 14 horas; reserva-se duas ou três horas para descomprimir e torna-se necessário encostar a cabeça no travesseiro para começar tudo novamente na manhã seguinte). Claro, há um batalhão de pessoas na pior e eu aqui reclamando do meu risoto de camarão. Apenas um porém: isto não chega a ser uma reclamação, apenas uma constatação do óbvio, das coisas como elas são.

Agora me encontro num momento particular em que estou sem emprego porque ainda não tenho permissão para trabalhar neste país. E dependendo do meu marido para o frango-com-macarrão de todos os dias. Há cinco meses não trabalho fora de casa: ganhei o nobre título de rainha do lar. Virei pilota de fogão, algo que também pode ser extremamente cansativo e enfadonho, mas que neste momento não chega a me incomodar. Divido o meu dia entre a cozinha, o computador, as aulas de violão, a academia, a cuidar dos animais de estimação e o supermercado. Diariamente alguém dos Estados Unidos ou do Brasil me pergunta quando voltarei a pegar no batente. Ainda que minha permissão de trabalho só saia daqui a três ou seis meses, semanalmente meu marido me pergunta se já andei pesquisando empresas em Houston, para onde nos mudaremos em breve. E cada vez mais percebo novamente o óbvio: que somos julgados pelo trabalho que temos ou que não temos, e que há uma pressão enorme em ter que se trabalhar. Ou em ter que produzir algo, qualquer coisa que não seja tão ordinário como esta vida doméstica que atualmente vivo. Como já sabemos, os playboys de antigamente, que passavam a vida entre festas e iates sem jamais bater ponto, já não têm o mesmo status dos playboys de agora que trabalham pela ambição de fazer mais dinheiro, por poder, ou quem sabe até por prazer. A tônica da modernidade dita que se você não precisa trabalhar, então tem que ser patrão. Agora, uma heresia: não sou playgirl e a verdade -- e preciso gritar -- é que não estou sentindo a menor falta do trabalho. Daquele trabalho que me trouxe tanto e me fez chegar até onde estou hoje (olhando por um lado bem simplista, fui eu quem comprei minha passagem e fiz toda a minha mudança para os Estados Unidos; tudo com os reais contados do meu suor). Nem estou com pressa de produzir nada além deste blog, nem de inventar outros projetos, outros hobbies, enfim. Tem horas que a gente tem que ser ordinário mesmo, até porque no meu caso sei que isto não será para sempre. Tem horas que a gente tem que apertar o botão de pause pessoal para poder digerir tudo o que não tivemos tempo de fazê-lo porque não tínhamos tempo.

Não ganhei na loteria nem me casei com um homem rico. O dinheiro está contado e para mantermos o padrão que tínhamos antes do casamento eu terei que voltar às origens muito em breve. O que farei com gosto quando a hora chegar, dando o melhor de mim para a empresa que me contratar. Já tenho um plano traçado, e o desejo de ser patrão também está lá, me servindo de cenourinha nesta corrida chamada vida. Mas tudo dentro do seu tempo.

2 comentários:

  1. Ju,
    Esse assunto de ser ou não ser do lar me toca muito e sempre e tanto que mesmo em face do encanto de trabalhar e produzir (note que no lar só há o trabalhar), mantenho no fundo da alma, o peso de não estar sempre em casa para cuidar de minhas filhas.
    Desculpe-me antecipadamente por entrar nas suas opções pessoais, mas, vivendo em sociedade, estamos sempre sujeitos ao outro. Por falar em filhas, você disse que tem seu plano traçado - nem imagina o quanto eu admiro planos! - nele você incluiu filhos?
    Sou fã da capacidade feminina de ser mãe. Acho que é o dom mais bonito que possuímos e desejo a todas que amo a realização plena da maternidade, por isso desejo a você também.
    Beijos,
    Geninha.

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  2. Ju!!! Eu estou nesse momento pause e adorando, também não tirei na megasena nem casei com homem rico :) mas acreditando que tudo tem seu tempo! Tou aqui em Recife procurando e "estudando" alguns bons caminhos também. bjssssss
    Fabíola

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Eu adoro um comentário sobre as minhas coisices. Escreve, escreve!