segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Estereótipos e caricaturas de um certo Brazil


Sábado à tarde, irritada com o fato de o Presidente Barack Obama ter recebido na última quinta-feira o Nobel da Paz -- considerando que apenas uma semana antes ele havia anunciado o envio de mais 30.000 tropas para o Afeganistão, numa campanha em que até mesmo alguns de seus generais prevêem o que se tornará uma guerra ainda mais caótica que a do Iraque -- eu zapeava canais de televisão até encontrar algo totalmente leve, divertido e à prova de irritação. Parei no canal Bravo, onde mais um episódio de America's Next Top Model se desenrolava. Este reality show, no qual meninas esqueléticas tentam ser a próxima Gisele Bündchen, é uma daquelas frivolidades que rende boas gargalhadas sem exigir fosfato algum do cérebro. Como toda mulher, carrego a mulherzinha interior que sempre teve um desejo oculto de ser modelete. Às vezes nem tão oculto assim. Tanto que --- e aqui revelo aspectos do meu negro passado -- aos 11 anos ganhei o concurso de Rainha de Milho do colégio e aos 12 anos conquistei o título de Miss Jardim Paulo Afonso, o nome do meu bairro. Parei por aí. Alguém me disse que é a beleza interior que conta, mas depois de crescer e ficar um pouco mais cínica acho que deve ter sido alguém bem feio. Mas voltando ao programa: sábado não era o meu dia, pois não apenas aquele foi o episódio mais irritante que poderia ser veiculado, como também uma força maior me impedia de desligar o vídeo. Eu precisava assistir até o final aquele conteúdo medonho que trazia à tela mais uma caricatura de um estereotipado país chamado Brazil, só para ter certeza de que a sua imagem no exterior continua tão igual à que sempre foi.


O tom de "originalidade" foi dado no momento em que as modelos souberam onde se passaria a próxima prova: uma chuva de papéis verde-amarela, samba como fundo musical e jurados dançando desengonçadamente com caribenhas maracas coloridas nas mãos. Afinal, tudo ao sul do Texas é praticamente a mesma coisa para a maior parte do (ignorante) público nestas bandas do norte. Ou seriam as maracas representativas de Carmem Miranda, o estereótipo-mor da brasileira que desde a década de 1940 permeia o imaginário norte-americano? Meu marido, às gargalhadas com minha fúria no olhar, trazia bananas e maçãs da cozinha e as colocava na minha cabeça. O que mais dói é que aquele programa não foi preparado por pessoas ignorantes. Refaço: ignorância é algo relativo. Tenho certeza que quem escreveu, dirigiu e/ou produziu o show estudou, viajou e saiu dos Estados Unidos pelo menos uma vez na vida. Mas é mesmo muito mais fácil e cômodo nivelar por baixo.

O episódio se passava em São Paulo, onde as modelos enfrentavam diversos desafios que culminariam na eliminação de uma delas. A recepção das moçoilas foi no Jardim Botânico, onde -- e como não? -- um grupo de mulatas em roupas minúsculas e estandartes na cabeça rebolavam o burugundum. Na primeira prova, as modelos tinham que comprar flores para levar para ninguém menos que a Girl from Ipanema. Pelo menos nesta parte eu vibrei -- não pela Garota de Ipanema, mas por ver minha amiga Verônica fazendo o papel de florista. Foi bom ter assim, tão dentro de casa e a milhares de quilômetros um rosto familiar e querido. Mas eis que a própria Garota de Ipanema, Helô Pinheiro, em carne e osso (e total falta de bom senso) desce as escadarias requebrando as cadeiras e remexendo os bracinhos bem ao estilo Carmem. Não satisfeita, ainda ensina às participantes que elas precisam saber se mover "com graça", pois foi por esta razão que se tornou musa daquela música. A esta altura, eu já estava com a cara totalmente enterrada na almofada, morrendo uma trágica morte de VPP (Vergonha Pela Pessoa, genial termo que aprendi durante minha estada carioca).

Helô Pinheiro aparece no vídeo abaixo a partir da marca de 1 minuto.


Como todo bolo que se preze tem uma cereja no topo, o programa ainda adicionou esta mega cereja de desafio: as garotas iam a uma favela para uma sessão de fotos fantasiadas de quem? De quem? Ninguém menos que Carmem Miranda! Façamos justiça: foi interessante o programa trazer a favela tão para dentro do mainstream. Neste ponto, ajuda a quebrar o preconceito de violência sempre associado a estas comunidades. Mas havia algo de bizarro e cruel naquele gritante contraste de pobreza com o luxo de belas fotos em modelos gringas e (quase todas) muito brancas. Era a miséria sendo tomada como exótica e apresentada a um público que não conhece nada ou praticamente nada daquele universo.



A falta de aprofundamento deste olhar estrangeiro sobre o país registrava (novamente) em foto e vídeo um Brasil simplificado, paradisíaco, pobre, selvagem, tropical e sensual. Um olhar estrangeiro formador de opinião que repassava para mais uma geração uma versão lugar-comum de Brasil, batida por séculos desde os tempos de Hans Staden. Não que o estereótipo não traga traços da realidade, mas por fazê-lo de maneira tão simplista e superficial acaba por se tornar nocivo, carregado de preconceitos, reduzindo a realidade a um olhar repetitivo e carregado de clichés. O próprio Brasil tem em parte culpa por este olhar reducionista, pois durante décadas vendeu em campanhas turísticas no exterior um Brasil de mulatas, samba, futebol e floresta Amazônica. Até mesmo recentemente a própria campanha pelas Olimpíadas no Rio esteve carregada com estes mesmos símbolos tão profundamente cimentados no imaginário universal. Pior ainda é quando vejo ou escuto que brasileiros continuam a propagar os mesmos velhos conceitos. Outro dia num restaurante mexicano o dono, quando soube minha nacionalidade, veio me dizer que conheceu uma brasileira em San Antonio, Texas, que vendia biquínis "muy, muy pequeños" e que de acordo com ela era o que as compatriotas usavam nas nossas belas e tropicais praias. Há mentira nisto? Não. Mas este tipo de situação só enfatiza o aspecto "Brasil-terra-de-mulher-sensual-diga-se-de-passagem-puta" que permeia o imaginário da gringolândia. Está na hora desta gente bronzeada dar novos exemplos.

Conforme dissertação acadêmica do jornalista Ivan Paganotti, "os estereótipos são cruciais para a assimilação e reprodução de conceitos complexos, e tem um efeito positivo (...): oferecem um denominador comum a partir dos quais ( as pessoas) podem construir suas narrativas mais aprofundadas. Mas a armadilha simplificadora dos estereótipos persiste: quando não mais condizem com a situação que representam, eles precisam ser discutidos, transformados e, quando necessário, negados. (...) É cômodo basear a cobertura (jornalística) em pressupostos, alimentando as pré-concepções com dados, histórias e interpretações que reafirmam o que o público já sabe sobre a realidade ou, no pior cenário, repetir conceitos ideologicamente enviesados que simplesmente não condizem com a verdade." Porque sabemos (ou não?), que o Brasil é um país diverso e complexo, muitas vezes incompreensível até mesmo para nós brasileiros, que vai muito além destas representações batidas. Um país que tem pobreza sim, mas também progresso. Um país que produz e exporta aviões, possuidor de belas cidades, caatinga e serrado -- e não apenas praia e floresta amazônica--, e dono de uma produção cultural de alto nível em cinema, teatro, literatura, artes plásticas e dança (muito além do puro samba e rebolado). Um país empreendedor, com espaço para erudição, ciência e tecnologia. Para ser levado a sério, o Brasil precisa vender estes conceitos. Senão, corre o risco de ser eternamente um enlatado Brazil com prazo de validade vencido.

5 comentários:

  1. Aiai, minha solidariedade! Afinal não sou apenas eu a me irritar profundamente com os estereótipos do meu país.Acho chatérrimo ter que conviver com isso não apenas em programas de tv como na prática, qdo estou fora do país.Não sou o estereótipo da brasileira e muitas vezes as pessoas se surpreendem com a minha nacionalidade...e muitas vezes começa aquela sessão-horror de os homens darem sorrisos maliciosos e instantaneamente a falar de carnaval e mulheres peladas balançando a bunda.Ou então de violência, favela, criminalidade.É dose pra mamute e a unica coisa que eu posso fazer pessoalmente é mostrar pra essa gente que o Brasil não é só essa imagem cartão postal de fio-dental.Mas a massificação apoiada na imagem de Brasil país sensual de gente sorridente e despreocupada se esquivando de balas perdidas é tamanho que é briga é dura...

    Entendo como vc se sente, também me sinto assim.Ô saco!!!

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  2. Demorou, mas saiu... o texto e sua indignação. Gostei mesmo. E também por seu olhar pesquisadora, além de crítica social.
    Bravo!
    Bet

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  3. Adorei seu texto, caríssima Ju. Tem um livro bom que acabou de sair aqui no Brasil sobre esses estereótipos no cinema. Seu olhar é perscrutador, maravilhoso. Mas, um só cuidado com a nossa querida língua portuguesa. Você diz, por exemplo: "Foi bom ter assim, tão dentro de casa e há milhares de quilômetros...". Esse "há" está errado, o correto é a preposição "a", que trata de distância, e não de tempo percorrido. Outro deslize, também pequeno: "...VPP (Vergonha Pela Pessoa, genial termo que aprendi durante minha estadia carioca...". Foi durante sua ESTADA carioca. Estadia é o que se paga em hotel; estada é a permanência em determinada cidade.

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