sábado, 16 de janeiro de 2010

Garage sale


Neste instante minha casa é um mercado de pulgas em final de feira. A escuridão ainda esconde a alvorada mas chegam dezenas de compradores para levar aquilo que já foi útil ou apreciado um dia. Tenho virado expert em bazares, ou garage sales como são conhecidos por estas bandas. Algum sangue de comerciante turco deve correr nas minhas veias. Alguma cigana negociadora fugindo da inquisição em séculos distantes. O passado do meu marido indo embora a 70% de desconto. Seus quadros comprados na lua-de-mel com a primeira esposa. A faca que cortou o bolo do seu primeiro casamento hoje valeu 25 centavos de dólar. Mesa e cadeiras que servirão outras refeições, panelas que cozinharão outros temperos. A sala de jantar agora emana eco. A casa esvaziada. Um regozijo misturado com culpa dentro do meu coração e da minha carteira. Somos tão Madalenas nós mulheres. Mini-infartos em meu peito mais por ver seu passado indo parar em mãos alheias do que por ciúmes necessariamente. Me dou conta que ainda que meu marido tenha voluntariamente separado objetos para venda, a mesma não teria ocorrido não fosse por mim. Não fosse por nós. Não fosse pelos novos planos. Há sete meses também vendi meu passado em nome da nossa causa. Mas não adianta: frito ovos mexidos com linguiça defumada e lhe sirvo com voz doce sobre torradas como parte da minha sentença de réu culpada.

Quando nos casamos e me mudei para sua casa me perguntava se um dia conseguiria me livrar dos objetos que eu não gostava. Quase todos. Minha mãe, do alto da sabedoria das suas quatro décadas de casamento, me ensinava a ter cuidado. "Estas coisas são delicadas, minha filha." Porém me perturbavam os móveis antiquados com pés de leão, os arranjos de plantas artificiais, os quadros onde concordávamos apenas com o colorido das cores. Com os meses aprendi a ignorar os objetos que me doíam a vista. Percebi que a estratégia era não confrontar o gosto do meu marido. Aos poucos fui mostrando outros estilos, outros projetos. Sempre que havia uma chance eu fazia questão de entrar numa loja de móveis, mostrar outros conceitos de arte nas galerias que visitamos. Percebi que concordávamos em quase tudo e não em quase nada. Cabia apenas a mim conduzir a situação e trazer outros olhares. A chave era delicadeza. Cabia a mim saber ser mais esposa. A velha cigana negociadora abrindo fronteiras.

Há três grupos de compradores nas garage sales. Aqueles que têm condições de comprar coisas novas mas estão à procura de uma boa oferta, os que compram para revender e os que compram objetos de segunda-mão por total necessidade. Nesta cidade o segundo e terceiro grupo são maioria. Há profissionais de garage sale que acordam às 4h da manhã atrás de objetos que podem depois ser revendidos no México por três vezes o preço da compra. E há aqueles em busca de migalhas que lhes garantam um mínimo de dignidade, como a menina de uns 12 anos e olhar desesperado que me perguntava se eu tinha algum resto de perfume para lhe vender. Por que não lembrei de lhe dar o resto daquela fragrância que raramente uso? Eu poderia ter lhe dado, menininha. De graça. Jamais lhe venderia um resto de glamour. Qualquer coisa para diminuir a inquietude das suas pupilas. Não entendo porque minha compaixão só apareceu quando você partiu.

Aprendi a exercitar o desapego a objetos neste país, mais precisamente no ano 2000. Meu apartamento incendiou e perdi quase tudo. Entre as cinzas, com leves chamuscadas mas praticamente intactos, estavam as fotos e diários dos quatro anos anteriores que eu havia vivido aqui. Percebi que no fim das contas as memórias são tudo o que levamos da vida. E eu não queria perder as memórias exatamente da forma em que foram vivenciadas. O tempo nos modifica, mas retém as palavras. Palavras são imortais quando registradas e até mais reais que as fotografias. Por vezes não me reconheço em antigos cadernos redigidos a mão. Fotos, por outro lado, quase sempre carregam a superficialidade da nossa vaidade. Sorrimos mesmo quando a dor é dilacerante. Mas as fotografias não deixam de ser um mergulho no passado, uma lembrança de quem fomos, uma saudade de quem pretendíamos ser. Uma bola de cristal ao avesso.

Muito já foi falado sobre a alma dos objetos. Objetos que carregam a energia dos seus donos. Quando fiz um bazar para deixar o Brasil antes de me casar, algumas pessoas me confidenciaram que nunca compravam objetos de segunda-mão, mas que abririam exceção para os meus porque eu emanava energia positiva. Verdade. A felicidade em vendê-los era maior do que a dor de perdê-los. Algo muito especial estava em jogo na minha vida. Caso fosse por necessidade grave, como problemas financeiros ou de saúde, um pouco da minha dor iria junto na transação.

O dia raiou e o pouco que sobrou será doado. Um balde de silicone, um contador de moedas, uma guirlanda outonal, duas camisas surradas, um par de muletas. Já fechamos as portas, já contamos o apurado. Há o suficiente para pagar o caminhão da mudança. Os objetos já circulam por aí com seus novos donos, outros aguardam adoção. Há o projeto de um apartamento na cidade nova com decoração a quatro mãos. Há o prelúdio de uma casa que se parecerá mais com nós do que apenas com ele. Em breve chegará a nossa vez de varar a alvorada atrás de boas barganhas. Há um certo charme nesta busca quando integramos a categoria dos não-necessitados. Pago um bom preço por objetos com almas leves e passados passado a limpo.

5 comentários:

  1. Muito bom texto,Fronteirices! Aqui no Brasil como não existe garage sale já levei muuuuita coisa pra vender em brechó ( daqueles que aceitam tb artigos de decoração.)Como toda brasileira supersticiosa, tb sou meio grilada com essa questão da energia dos objetos...isso se aplica até mesmo a apartamentos, de carros ( pq será que a pessoa está vendendo?! Está apegada ao objeto?! Está saindo daquela pra uma melhor?!) e sobretudo de artigos de uso pessoal.Não gosto de emprestar nem tomar roupas/sapatos emprestados.

    Sou cismada inclusive de repassar minhas coisas, como é hábito no Brasil, para empregados ou conhecidos.Sempre prefiro dar para desconhecidos, anonimamente.E não me lembro de ter comprado coisas de segunda mão tb.Mesmo com essa febre da onda retrô por aqui.

    Adorei o tema,acho que ( como aquele tema da inveja, lembra?!) vou usar de inspiração pra um post!

    Câmbio, desligo! :-)

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  2. JU!

    Não preciso nem dizer nada de compras, né? Suas ex-coisas estão me servindo horrores :)

    Que bons ventos a levem para a nova cidade!
    Lhe mandarei um e-mail com as atualizações da vida.

    Beijo, nega!

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  3. Valeu filhota palavras neste espaço e desapego em outro... até criar outras raízes.
    Mommy

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  4. Juli e Wade,
    Maravilha! O ano novo está começando com muitas possibilidades e caminhos novos, boa sorte a vocês.
    Beijos,
    Cecilia.

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  5. Oi, Juliana

    Adorei seu texto; a impressão é de que vc escreve em um fôlego só, numa inspiração longa e feliz para nós, seus leitores.
    Aqui em Brasília, há muitas garages sales; aliás, como dizemos no Nordeste, "é o pau que rola". Muitas são ótimas, outras nem tanto, e ainda há sem classificação. Mas no geral, muita coisa boa se consegue a bons preços. As"almas" alheias não me incomodam; acho que a minha as engole.
    Vejo as garages sales mais ou menos como um rito de passagem, no qual se carrega da fase anterior da vida só o que interessa, o que foi bom. Agora, eu mesma fazer uma, não sei..... meu processo de desapego é longo.
    Boa sorte pra vocês, no novo lugar e tempo.
    Beijo.
    Irene

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Eu adoro um comentário sobre as minhas coisices. Escreve, escreve!