quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Das coisas enterradas no jardim

O ser humano não é apenas matéria, é também espírito. Ou assim tentamos crer. Entendemos os eclipses, a virada das marés, o conceito de Big Bang, a evolução de primatas a homo sapiens a homo informaciones nesta época de blogs, Twitter e Facebook. Entendemos que somos carne, mas prosseguimos na busca do entendimento do que há por trás dela, ou dentro dela ou além dela. Tem algo a mais além de átomos e células e mitocôndrias que dá a ignição para nos mantermos alertas e que nos faz seres conscientes da própria consciência. Chame de Deus, de Deusa, de Força Universal. Viver a vida racionalmente é um caminho, mas viver com elementos de misticismo e fé atrelados, certamente faz desta uma jornada mais rica. E como pode ser mística a vida aqui na fronteira! Há três semanas um causo curioso me ocorreu fazendo reativar minha dormente fé. Um causo que envolve caveira de porco, chifres de veado, vela de pimenta forte, ovos de galinha de capoeira, um bruxo travesti e um santo enterrado no jardim de casa. Eu, que vivo na fronteira entre o crer e o não crer, sempre pendendo para a primeira alternativa, por via das dúvidas saí em busca de auxílio para reverter um feitiço que havia sido lançado contra meu matrimônio.

Há um jardim plantado na frente de casa. Arbustos verdes bem cortados com pequenas flores roxas que proliferam no verão. Nunca fui de saber o nome das flores, mas sempre soube apreciá-las. No princípio do outono plantamos uma roseira que aos poucos está vingando. Naquela tarde de outubro, três dias após o meu casamento, descobrimos que haviam plantado à nossa revelia algo um pouco mais medonho: uma caveira de porco selvagem e três chifres de veado. Tudo enfiado num balde semi-enterrado no canteiro e que com certeza absoluta não estava lá pelo menos duas semanas antes. Minha mãe descobriu a "encomenda" por acaso enquanto esmiuçava o jardim. Achou a caveira perturbadora, mas os chifres tão lindos que chegou a limpá-los para decorarem a casa. W. pediu para não mexermos em nada, e temendo que pudesse ser algum tipo de ameaça, chamou amigos policiais para investigarem. A investigação não chegou a conclusão alguma, mas eu não tive dúvidas: é despacho, mandinga, macumba e é coisa de mulher!

As expressões "corno", "chifrar" ou "cornear alguém" não fazem o menor sentido para o americano comum, mas no México carregam o mesmo significado que para nós brasileiros. Conversando com locais mexicanos e descendentes descobrimos que eu não estava enganada: era feitiço e tinha a intenção de separar o casal através de infidelidade, representada pelos três chifres. E para trazer ainda mais dramaticidade à esta insólita história, ainda havia uma conexão satânica, simbolizada pela caveira de porco. Valei-me, meu Oxóssi!

Jamais imaginei que quando saí do Brasil para vir ao Texas eu fosse ter contato com este tipo de misticismo. Eu sempre fui muito medrosa em relação a espíritos, demônios, capetas e etc, certamente influência da educação em colégio católico que deixou alguns traumas na minha psique. Como eu morava perto de uma encruzilhada, de vez em quando apareciam umas galinhas pretas com farofa na esquina. Eu morria de pavor e passava longe. Quando morei em Iowa e no Kansas há mais de uma década, raramente meus medievais medos passavam pela cabeça, pois tudo lá era tão material. Por mais que vez por outra eu fosse à igreja (como parte de uma aventura cultural e sempre acompanhando alguém), a vida naquelas terras transpirava a matéria pura e simplesmente. A própria natureza dos cultos protestantes que eu atendia, exceto os da Igreja Batista, não dava tanta margem ao misticismo quanto as missas católicas. Meu medo naqueles tempos era de solidão, algo que já não sinto mais (a vida me ensinou que sozinhos sempre fomos e sempre seremos, mas que ser solitário ou não cabe a cada um). Mais tarde na vida entendi melhor as manifestações religiosas e passei a respeitar as oferendas. No Rio de Janeiro eu sempre pedia licença quando topava com uma -- e se você fizer uma trilha pela Floresta da Tijuca, encontrará várias. Mas diferentemente do meio-oeste americano, aqui nesta fronteira de Estados Unidos e México matéria e espírito se entrelaçam. O catolicismo é fervoroso, ainda que todos pratiquem os habituais pecados, e os elementos de sincretismo religioso são fortes e visíveis, como o culto de adoração à Santa Morte, que merece um texto só para ela. Vísivel também, como acabei de conhecer, é mandinga das bravas. Não cheguei a sentir medo do despacho no meu jardim. Senti mais foi indignação em saber que alguma alma-viva sebosa se deu ao trabalho de catar aqueles ossos e despejar negatividade para minha família.

Como não posso sair do país até meu greencard chegar, minha amiga M., a quem relatei a história, tomou o assunto com urgência e tratou de levar minha mãe a uma hierbería (casa de artigos religiosos e de santería) em Nuevo Laredo, México. M. é mexicana e conhecedora da alma deste lugar, com PhD da vida em homens inescrupulosos, inveja feminina, feitiçarias e mandingagens. Afirma que era uma pessoa descrente até quando passaram a lançar despachos contra ela e sua casa foi tomada por demônios que infernizaram sua vida e a dos seus filhos, arranhando as paredes, batendo portas e fazendo toda sorte de demonices. Desde então, M. nunca deixou de tomar todas as precauções possíveis para se defender da negatividade alheia, como andar com santinhos na bolsa, no carro e rezar muito. Naquela noite, M. e minha mãe voltaram do México com um pequeno arsenal de proteção contra o mundo dos espíritos ruins: três velas regressoras de feitiço (instrução: acender de cabeça para baixo e em seguida colocá-las no chão formando um triângulo; dentro dele eu deveria escrever o meu nome e o do meu marido); uma vela para o anjo da guarda (instrução: enfiar na cera papeizinhos com os nomes das pessoas por quem peço proteção, com o cuidado de acendar a vela de cabeça para baixo); uma vela de chili (pimenta forte) para levar embora a inveja e o olho grande (instrução: enfiar na cera papeizinhos com os nomes das pessoas que possivelmente poderiam sentir inveja minha e do meu marido, com o mesmo cuidado de acender a vela de cabeça para baixo); um incenso para limpar o ambiente; e dois ovos de galinha de capoeira que fariam parte de uma sessão de desfaz-feitiço organizada por uma senhorinha do lado de cá da fronteira.

Como a tal senhorinha desmarcou de última hora a nossa pajelança, M. nos levou para uma consulta com Luis, que atende numa hierberia no lado sul de Laredo, Estados Unidos, área notadamente mais pobre e com estigma de gueto. Era uma loja semelhante às de artigos para candomblé e umbanda comuns no Brasil, exceto que em vez de imagens de Iemanjás e São Jorges proliferavam imagens da Santa Muerte. Não me prolongarei sobre este fascinante culto, mas posso dizer que depois daquele dia a Morte representada por aquela cadavérica senhora vestida de preto deixou de ser algo amedrontador. Mas até eu conhecer os fatos sobre a Senhora-do-Além, sentia um desconforto seguido de frio na base da espinha naquele lugar repleto de imagens, fumaça de incenso, cheiro de velas queimando e oferendas de maçãs, tequila e flores.

Luis chegou e se dirigiu a uma salinha onde fazia suas consultas de tarô em frente a um altar repleto de oferendas e velas para uma Santa Muerte do meu tamanho. Luis tinha uma cara enorme com uma papada sobressaltante, cabelo castanho-acaju com cachos duros de laquê descendo até os ombros, olhos pequeninos pintados com sombra escura e várias camadas de rímel. Vestia saia curta e uma camiseta colada no corpo grande e inchado, deixando aparecer o decote nos pequenos seios. Sua pele marrom-escura estava coberta por vários colares, pulseiras e anéis de ouro. Se apresentou como Fer, seu alter-ego travestido, e exibia um ar de mistério e sedução. Fui direto ao ponto e expliquei a razão da minha presença. Ao mostrar a foto da caveira com os chifres, Luis/Fer começou a indagar sobre o passado amoroso do meu marido até apontar precisamente que foi uma ex quem preparou o despacho, dando praticamente nome aos bois. "Não porque ela seja apaixonada por ele, mas ela não quer vê-lo feliz." A mesma ex que meu marido, embora incrédulo, disse dias antes ser a única pessoa que poderia se dar ao trabalho de fazer, bem, um trabalho. Luis/Fer garantiu que tudo ficaria bem, mas que para quebrar o despacho eu deveria acender uma vela de 7 dias com aroma de maçã e limpar a casa com a Água Espiritual 7 Potências.

Logo após a consulta, minha casa estava repleta de velas e devidamente higienizada com a água bentificada. Não me dei ao trabalho de enfiar papeizinhos na cera e acabei fritando uma boa omelete com os ovos de galinha de capoeira. Mas até meu marido W., que é extremamente cético a ponto de rir de tudo o que eu estava fazendo, passou a usar um escapulário que minha tia havia lhe presenteado. Nestes mesmos dias havíamos ganhado de presente de casamento uma imagem de São José. Segundo o costume local, caso você queira vender sua casa, algo que estamos tentando há quase um mês, deve-se enterrar o santo de cabeça para baixo no seu jardim. Quando o milagre for atendido, o santinho deve ocupar lugar de destaque na nova residência. O enterro (tortura?) do São José teve, assim, duplo significado: funções imobiliárias e protetoras de possíveis futuros despachos. Em tempo: por que tanta fissura com coisas enterradas por aqui?

Expliquei ao meu pai todos os pormenores da história e perguntei o que ele teria feito no meu lugar. Do alto da sua sabedoria e praticidade, o homem não hesitou: "sentava no lugar onde acharam a macumba e cagava em cima." Acho que realmente uma boa cagada depois de um almoço regado a brócolis e repolho daria conta: reverter mandinga com catinga. Mas eu não conseguiria ir por um caminho tão racional. Se no reveillon na praia peço luz e proteção com velas acesas e flores ao mar, por que não acrescentar um pouco de firula mística a um episódio enraigado numa crença popular? Depois de tanta vela acesa creio que não sobra mais nem pó das intenções maléficas dirigidas ao meu lar. Mas não custa nada passar um sal grosso no corpo e fazer umas orações vez por outra. No fim das contas, bem ao meu estilo Poliana de ser, até agradeço à mandingueira de plantão por não apenas ajudar a reacender a minha fé, como também a me fazer vivenciar a deliciosa experiência cultural do submundo espiritual da fronteira.

7 comentários:

  1. Vez por outra fico achando que Juliana inventou essa história de Estados Unidos, da tal "Laredo", mas na verdade ela voltou pro Nordeste. Deve estar lá aprendendo a bordar, a fazer doces e cuidando da criação de cabras com o marido. Nada de mal nisso, hein? Desconfio que na verdade ela esteja morando em "LaJedo" , no Agreste pernambucano. Tirando o tamanho do chifre, no Nordeste o chifres são menores, mais mirradinhos, essa história só poderia ter acontecido por lá mesmo. Não que só exista chifre por lá, claro. A questão é mandinga e outras questões culturais como a preocupação com esse adorno tão popular. Não é mesmo?

    Neste quesito de chifre a sogra é quase sempre a primeira a descobrir. Nenhuma novidade nisso, mas sua mama quebrou todos recordes. Matou a charada antes mesmo da intenção maligna começar a se infiltrar na cabeça, digo, na mente do casal. Ainda tem gente que diz que sogra dentro de casa não dá certo...
    O ruim é que agora ninguém vai poder mais usar a desculpa que forcas estranhas te levaram a fazer qualquer besteira. rsrsrsrs...
    Bom que tudo ficou bem. "Do limão uma limonada", nnao é isso que se diz? POis bem, pega os chifres do infeliz e abre uma sucursal do Bar do Côrnos por aí. Vai bombar!!!! Tua propriedade fica perto da da BR 232, não é? rsrsrsrs....

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  2. Mango mango, mangalou treis veiz!!

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  3. Coitada da mulher louca... ela agora vai se remoer eternamente por você ter descoberto o surto dela no seu jardim. Mas eu acho que você deveria aproveitar a onda mística, pegar mais dicas por aí para quando precisar, compra um caderninho e sai anotando! Vai que precisa aplicar na nova cidade... Nunca se sabe né, maluquice tem em tudo quanto é canto. Sua história foi muito divertida e não muito atrás ficou a de seu amigo, dizendo que você tá em Lajedo, muito bom!!!!!!! Isso não parece coisa americana mesmo...

    Olhe, se cuide. Se proteja, se 'feche' como diz o povo e continue andando com esse sorrisão que mata o povo ruim de vez. Beijo!

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  4. Juliana, Cecilia me passou o seu blog e eu estou adorando as suas estórias. Vc está escrevendo lindamente, consigo até imaginar as cenas. É sempre um prazer quando vejo que tem um nova estórinha. Já conheço bem Lajedo...(KKK).
    Vc está escrevendo muito bem, deveria investir mais seriamente nisso.
    Beijos e até a próxima
    Anamaria

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  5. Ju,
    Macumba aí, que horror!
    Concordo plenamente com vc, se a gente corre atrás da energia positiva, por que não temer a negativa????
    Fique com Deus e Nossa Senhora!
    Beijos,
    Geninha

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  6. Ju,
    Adorei a idéia de seu pai, super prático e espirituoso.
    Em matéria de espiritualidade tenho experiência. Vc pode de vez em quando tomar um banho de sal (de cozinha mesmo) da cabeça aos pés, para se energizar e afastar as energias negativas, faço isso sempre.

    Bjs!

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  7. isso e coisa de gente que não consegue ser como a gente e morrre de inveja. e coisa de gente que infeliz que fica triste com a felicidade dos outros. o importante e acreditar e confiar em Deus, pois nada pode nos atingir somos fieis Deus nos ama.

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