sábado, 1 de junho de 2013

Entre ovos, lápides e o miolo da vida



Primavera na grande planície do meio-oeste americano. Brisa intensa de dar nó nos cabelos, nem morna nem fria. Um cheiro delicioso de terra orvalhada, uma tempestade que ficou só na ameaça, verdes plantações de trigo de perder de vista. Passei quatro dias nas tripas do Kansas, a 12 horas de carro de Houston, em meio a vilarejos empoeirados, vazios restaurantes de beira de estrada localizados nos fundos de postos de gasolina, fazendeiros monumentais vestindo macacão jeans, ovos por chocar encontrados nos cantos e pequenos cemitérios de lápides centenárias.

Comi pão de canela num café Amish, tomei banho em banheira com pata de leão numa casa de fazenda mal-assombrada, vi falcões voando lentamente à espreita de caça, levei choque em cerca elétrica com uma vaca olhando direto no fundo da minha agonia e fui batizada com mijo de tartaruga ao tentar salvá-la de um futuro atropelamento na beira da estrada. Mas um dos pontos-alto da viagem foi a reunião de 50 anos da turma da high school do meu sogro. Se tem uma coisa que eu acho extraordinária na cultura americana é a vontade sistemática de manter viva a tradição de reuniões anuais com pessoas que fizeram parte da sua adolescência. Repudiadas por uns e amada por outros, estas reuniões de turma fazem parte da cultura coletiva do país. O efeito deste encontro nesta errante blogueira? Indagações cerebrais em excesso sobre a vida que escolhemos, as histórias que nos descrevem (ou as histórias que acreditamos nos descrever).


Tarde de sábado. O Ramada Inn de Hutchinson, Kansas, população 42.000, acolhia ex-alunos da Arlington High School e seus familiares. A maioria havia se formado entre os anos 1955-1965. Algumas senhorinhas da turma de 1938 também marcavam presença. Uma delas andava em passinhos minúsculos e gesticulava em slow motion. Uma outra apresentava enorme vitalidade: me puxou para um canto e conversou sem parar, interessada não apenas em contar suas histórias, mas também, para minha surpresa, em saber um pouco das minhas. A maioria das 100 pessoas ali reunidas, quase todas de cabeça branquinha, havia comutado de cidadezinhas e vilarejos como Arlington, lar de 474 habitantes, ou Centralia, 500 residentes incluíndo meu sogro. Eu me sentia um peixe fora d'água. E era. A princípio eu tive vontade de sair correndo, mas apertei o botão do "isto é uma aula de antropologia viva, então aperte o cinto de segurança, aproveite o passeio e retire preciosas lições." A cada dois minutos eu escutava uma voz sussurrando "você está neste momento onde estava destinada a estar." Sorry, eu me permito estragar de vez em quando com mensagens de auto-ajuda.


Havia ordem e uma certa formalidade na cerimônia. Num primeiro momento, uma recepção onde todos tinham a oportunidade de conversar entre si. Em seguida, todos em fila para o buffet que servia a tradicional comida country, farta em quantidade e minimalista no tempero à base de sal e pimenta-do-reino: rosbife, galinha frita, purê de batatas com molho de carne (gravy), espiga de milho cozida, salada de repolho adocicada (cole slaw), vagem e pão (biscuit). De sobremesa, tortas variadas, como maçã e noz-pecã. Após o jantar, o apresentator, de púlpito e microfone, relembrava alguma aventura vivida décadas atrás nos arredores dos grandes silos de grãos que ainda armazenam toneladas de trigo e soja. E memórias.

Nostalgia era o sentimento da vez. Como parte da programação, o apresentador chamou alguns representantes da turma de mil novescentos e sessenta e poucos para irem à frente do púlpito e contarem suas histórias: "Assim como no jogo de futebol (americano) há quatro quartos de tempo, hoje vivemos o último quarto das nossas vidas. Não há razão para se preocupar em estar contando vantagem. Fizemos o que fizemos. A maioria de nós ou conquistou os objetivos almejados ou desistiu de buscá-los. Apenas compartilhe o que para você é importante." Exceto por uma senhora que elaborou mais o seu discurso, o que ouvi foram resumos quase monossilábicos para descrever um período de mais de 50 anos.

- Trabalhei como professora, tive dois filhos.
- Eu vendi carros, me casei com minha adorável mulher e fui feliz ao lado dela e das minhas filhas.
- Eu me formei. Comprei um caminhão. Vendi meu caminhão. Me aposentei.

Não sei se foi foram as frases minimalistas ou o conteúdo exposto no excesso de simplicidade daqueles relatos, mas houve um choque imediato com minhas ambições. "Eu me formei. Comprei um caminhão. Vendi meu caminhão. Me aposentei." O indivíduo tem dois minutos para falar da sua vida e aquelas são as palavras que ele tem para compartilhar. O que aconteceu entre a compra e a venda do caminhão? Ou foi a sua vida um uníssono de carregamentos e descarregamentos de mercadoria com rosbife e purê de batatas para o jantar? E daí que sua vida tenha sido apenas a repetição do dia anterior? 

Este meu ridículo ego à procura de grandes aventuras se viu às caras com medo do Mesmo. A Mesmice é o papa-figo que aterroriza meu sistema nervoso central. A Mudança é o bicho-papão de outra metade do mundo. Muitas vezes é o espelho que nos aterroriza, a subconsciente constatação de ver o nosso próprio reflexo no outro: como agimos, como pensamos e como inconscientemente desaprovamos aquilo que não queremos ser. Em certos casos, o temor vem da ausência de reflexo - em excesso, chama-se falta de empatia.

É pretensão demais dizer que o que eu quero para minha vida, ou o que dela tenho feito, é melhor ou pior do que as escolhas do Outro. Cada um deve conhecer a medida da sua felicidade. Para uns, é dirigir um caminhão. Para outros, é construí-lo. Eu sabia que a vida que a maioria daquelas pessoas escolheu não era a vida que eu quero para mim: uma vida arrodeada pelos mesmos contornos geográficos, o mesmo prato de bife com batatas e conversas sobre o tempo, o calor e o frio. Ao mesmo tempo, invejo sua simplicidade, pois a minha eterna experimentação é campo minado para uma ansiedade frequentemente dilacerante. Se tem uma coisa boa que aprendi nas mensagens de auto-ajuda do mundo pós-Internet é que a comparação é um veneno feroz que sufoca a felicidade plena.

Considerando que morrerei de morte morrida e não de morte matada, é possível que eu chegue aos noventa e alguma coisa (e se for, espero que com olhos de cafeína). Neste caso, e tomando emprestada a metáfora do apresentador, atualmente este seria o segundo quarto da minha vida. Atingi uma série de objetivos que me me dei em ocasião da minha formatura da high school numa pequena cidade rural de Iowa. Alguns deles, larguei no meio do caminho porque já não faziam mais sentido. Também falhei miseravelmente na busca de outros, mas aprendi que o importante é não desistir. Há muitas lições aprendidas quando saímos da estrada e a eterna otimista em mim acredita que com esforço é possível ajustar o GPS interno e voltar à rota original.

Recentemente uma grande amiga me contou das suas aulas na School of Life. Entre os exercícios, um deles é escrever em dez linhas o que você fez da sua vida. Um outro é escrever, também em dez linhas, o resumo da sua vida incluíndo tudo o que você quer fazer daqui para a frente. Andei brincando de rabiscar estas coisas. Crítica que sou, não estou satisfeita com o resumo dos meus feitios. E me assustei com os rascunhos do que estaria por vir. Me assustei com o óbvio. Eu quero comprar um caminhão, pintá-lo de laranja e purpurina prateada, colar penas de falcão, levantar vôo e sair voando por aí catando histórias.





5 comentários:

  1. Havia escrito algumas coisas... Não botei como conta e apagou.
    Reescrevendo, pois...
    Continue desbra... vando. É sua natureza, coisas do mundo, nos ensinando também a olhar. Palavras, fotos e emoções...
    Esperamos sempre mais.
    Beijos
    Mommy

    ResponderExcluir
  2. Texto, como sempre, perfeito!

    Tenho uma sugestão pra vc não cair na monotonia: se entregue a esse dom que vc tem (o de escrever histórias fantásticas), publique-as e colha os frutos de viajar de país em país para lançar essas histórias, pq tenho certeza que elas serão sucesso [

    Bjo

    ResponderExcluir
  3. Ju!
    Viaje mais, por aí, vá!
    Me conte desses EUA que eu não conheço... morri de curiosidade desse evento, de ir além das fotos todas, de ver os velhinhos todos (cadê os velhinhos???)... conte mais aí. Adorei... e somos irmãs nessas crises, né? Tem jeito não... rs.

    ResponderExcluir
  4. Ju,
    desejo que consiga adquirir o seu caminhão o mais breve possível. E viva, como sempre intensamente, pintando-o de laranja e purpurina prateada... Afinal, nossas histórias são apenas o reflexo da nossa vida. Parabéns por mais essa história perfeita. Bjs, Lu Freire

    ResponderExcluir
  5. Nossa, como diz a molecada de Malhação 2013: "eu super me identifiquei. Este texto é mega a minha cara" rsrs. É Juliana, a mesmice também me amedronta e a sede de aventura é o que me move. A dura (e doce!) realidade muitas vezes não me permite alçar novos vôos então viajo pelos olhos alheios, assim como fui até o meio-oeste americano agora! Obrigada por compartilhar tão rica experiência antropológica!rs Beijocas Deise Eclache

    ResponderExcluir

Eu adoro um comentário sobre as minhas coisices. Escreve, escreve!