segunda-feira, 26 de outubro de 2009

"Yes, I do"


Dizem que quando você passa por uma situação de morte iminente sua mente produz um curta-metragem que resume sua vida em segundos. No dia do meu casamento, algo semelhante ocorreu comigo, porém com uma diferença em conteúdo: vi a minha vida amorosa passar na minha frente em segundos. Segundos que iam e voltavam ao longo de todo o dia 16 de outubro de 2009. Não é à toa: sair da solteirice e tornar-se Sra. Seu Marido é também uma espécie de morte. Mas nada de luto e sentimentos negativos: falo aqui da morte como renovação, conforme é interpretada pelos mexicanos dos dois lados desta fronteira onde temporariamente habito. Finda-se uma fase e começa-se outra. E a minha nova fase, com assinatura registrada em cartório, testemunhas e alianças, foi sacramentada num final de tarde quente, úmido e lindo do outono texano, sob uma chuva de milhares de borboletas que enfeitaram o Lago Casablanca como confeti da natureza enviado especialmente para brindar os noivos.

O formato final do casamento surgiu apenas três semanas antes da data oficial. W., que no passado se casou com todas as pompas, queria fazer do seu segundo casamento uma cerimônia extremamente simples. Como casamento é também negligenciar certas vontades, acabei cedendo: em comum acordo, optamos por um formato tradicional de casamento em cartório apenas com a presença de duas testemunhas. O modelo mais simples e o mais absolutamente nada a ver comigo. Nunca sonhei com festão de casamento, nem com igreja enfeitada, nem mesmo com casamento em igreja. Mas também jamais pensei em fazer algo tão burocrático. À medida em que a data se aproximava, eu já pressentia um arrependimento que duraria pelo resto da vida. Além da minha própria vozinha interior, eu também escutava de amigas casadas (algumas pela segunda vez) e amigas divorciadas que deveríamos fazer alguma celebração. Existem momentos que definitivamente devem ser celebrados, empanados em purpurina, sorrisos de amigos e bênçãos da família, e casamento é certamente um deles. Casar não é igual ir a padaria comprar pão. Você está comprando uma viagem alucinante, sem roteiro detalhado, apenas uma vaga idéia baseada nas experiências alheias e no seus instintos mais viscerais. Foi em setembro, quando eu encontrei meu vestido de noiva perambulando pelo shopping Mall del Norte, que a entidade burocrática que havia encarnado em mim começou a ser exorcizada. E num único telefonema que dei para a juíza confirmando a data da cerimônia, todos os detalhes do que seria a minha boda-tudo-a-ver-comigo surgiram como se eu já os tivesse ensaiado ao longo dos anos. Mal acreditei quando W. não apenas concordou com o formato final, como também quando seus pequenos olhinhos verdes brilharam mais fortes quando mencionei os pequenos detalhes que tinha em mente.

Algumas fortes emoções acompanharam os últimos momentos da preparação da boda. Pavor e pânico número um: dois dias antes do casório, o zíper do vestido não fechava nem a pau! Tentei acreditar que era o fecho que estava duro, mas tive que encarar a realidade: de todas as noiva que conheci, eu fui a única que engordou. Corri para a loja desesperada e ufa, um último número num tamanho imediatamente maior ainda estava no cabide. O ajuste ficou perfeito e a saga da busca pelo tão adorado vestido finalmente acabava ali.

Pavor e pânico número dois: a cinco dias do casório a aliança de W. ainda estava na Irlanda. W., que tem ascendência irlandesa, havia escolhido um modelo celta. Eu comprei a jóia pela Internet um mês antes do casamento e jamais poderia prever tamanha demora na entrega. Acompanhamos ansiosos o percurso da aliança pelo link do site dos correios. Um dia antes da cerimônia a aliança finalmente chegou a Laredo. Entrei em contato com os correios, que para aumentar o suspense explicou que a aliança seria entregue até as 15h do dia do casamento --sendo que a cerimônia estava marcada para as 17h! --e que antes desta tentativa de entrega não poderíamos buscar a encomenda pessoalmente. Eu já previa uma daquelas alianças de doce de criança sendo usada como substituta. Na manhã do grande dia, W. contou que se casava naquela tarde e conseguiu convencer os correios a entregar o pacote antes do horário de entrega oficial. Em Laredo, tudo é possível.

O relato do dia do meu casamento com W. começa com o detalhe pensado após todos os outros detalhes: o dia de noiva. Fiz questão de que fosse digno da minha purpurinice. Apesar do dinheiro contado em minhas parcas economias, não hesitei em ir no melhor salão e day spa da cidade. Comecei com uma sauna para desintoxicar meu corpo de qualquer medo e insegurança (a noiva que disser que não sentiu uma pontada destes sentimentos no dia do seu casamento está mentindo). Dali, segui para uma salinha escura de repouso que tinha na parede uma grande foto iluminada mostrando uma caudalosa fonte, como que para levar sua mente embora naquela espuma branca. Me ofereceram água ou vinho: não hesitei em escolher o chardonnay. Com o estômago vazio, o vinho começou a surtir uma deliciosa e relaxante embriaguez. Naquele momento, o filminho da vida amorosa começou a rodar: as brincadeiras de casinha na infância (curiosamente, eu e minhas amigas quase sempre dizíamos que o marido estava viajando); a primeira paixãozinha do colégio; o primeiro beijo aos 12 anos; os amores da adolescência; os amores da vida adulta; os homens que me endeusaram; os homens que não me valorizaram; os homens que viraram amigos; os homens cujos corações eu parti...todos, até culminar com a cena daquela manhã, em que eu e W. acordamos juntos e a primeira coisa que ouvi foi "feliz dia de casamento, meu amor". Naquela sala, o compartimento sentimental da minha mente estava a mil. Pensei na cerimônia que seria dali a poucas horas, lembrei dos familiares e amigos que não estariam presentes. Uma lágrima escorreu involuntariamente, mas nada disto, o momento é de alegrias, se eu pudesse fretava um avião e traria todos para cá, ou voaríamos até o Caribe e faríamos um luau por três dias e três noites sem parar, ou colocaria todos num barco no Rio São Francisco e comeríamos bode assado durante uma semana ou então... "Senhora, por favor me acompanhe para sua hidromassagem". Aquele frenesi de neurônios fez uma breve pausa durante os segundos entre a sala de repouso e a hidro. Mas foi apenas deitar naquela banheira para os próximos 40 minutos de uma intensa hidromassagem em leite de coco combinada com a fantástica massagem pelas mãos de uma massoterapeuta, para o burburinho de neurônios voltar. Eu boiava sobre a água naquele quarto à meia-luz com cheiro de fruta, cheiro de vela e música de meditação. Eu me purificava naquela água e nela me batizava, deixando para trás minha solteirice, todas as suas alegrias e dores, e entrava num casamento, com igualmente todas as suas dores e alegrias. Um pé no sonho e outro na realidade, cada um tem que encontrar sua forma de equilíbrio. Já refeita do meu momentâneo delírio catártico, parti para o último tratamento, mais uma hora de massagem sueca profundamente relaxante. Terminei meu combo-Cleópatra me sentindo uma pena de tão leve e tranquila. Tomei uma ducha forte e segui para a área do salão de beleza.

Uma semana antes eu havia ido ao salão para deixar todo o pacote pago e escolher o meu penteado. Tinham até tirado uma fotocópia do modelo que gostei e deixado separado para o dia oficial. Claro que vida sem emoção não é nada: no dia oficial perderam a foto. A cabeleireira fez um penteado que até hoje fico na dúvida se gostei ou não. Era definitivamente um ninho de passáros. Tinha ao mesmo tempo uma anarquia e uma harmonia que me encantava e me repelia. No ano passado fui ao casamento da minha amiga Cecília e me arrumei juntamente com ela e sua mãe no mesmo salão. Achei lindo mãe e filha compartilhando aquele momento -- há algo de poderoso neste processo de embelezamento onde criadora e criatura interagem -- e desejei desde então que o mesmo ocorresse comigo. Desejo atendido: minha mãe, que há apenas dois dias havia retornado a Laredo especialmente para celebrar a data, chegou ao salão. Com o cabelo aprovado pela progenitora, era hora de seguir para a maquiagem.

Eu temia que me deixassem com cara de drag queen, a maquiagem oficial de Laredo, seguida do estilo "gueixa latina". As lareirenses adoram uns looks pavorosos seja dia ou noite, baixo sol ou chuva: argamassa de base e pó, blush em excesso, sombra escura e pesada, delineador da grossura de um dedo e cílios grudados por dezenas de camadas de máscara. Mas a minha maquiagem foi nota 10. Gostei tanto do serviço que desejei nunca mais lavar meu rosto. O buquê chegou da floricultura e eu me enamorei com a delicadeza das rosas brancas. Estava lindo, discreto e elegante. Eu já era um projeto quase pronto de noiva. Também havia encomendado uma orquídea natural para meu cabelo, mas não caiu bem. Por sorte, o salão vendia acessórios e achei um enfeite com pérolas que combinou perfeitamente com a ocasião. Coloquei o vestido e eis que diante do espelho vi uma noiva de verdade. Uma noiva bem eu, com um vestido que não era uma fantasia de noiva, mas um vestido eu com cara de noiva. Um vestido curtésimo, o que levou minha mãe a falar incessantemente, até minutos antes da cerimônia, que eu deveria usar uma meia fina, algo que certamente não fiz. Uma noiva rechonchuda comparada com meu peso normal,com braços e pernas grossas, mas gostando muito do conjunto que via. E eu não queria mais largar aquele buquê. Incorporei a noiva, encarnei a personagem e parti para a cerimônia escoltada por minha mãe, o padrasto de W. e sua esposa, que juntamente com as três sobrinhas de W. pegaram estrada e avião de Kansas e Maryland para celebrar o momento.

Chegamos ao Lago Casablanca e uma nuvem de milhares de borboletas de várias cores nos recebeu, pequenos leques flutuantes abanando o calor daquele final de tarde. O tempo amanheceu nublado naquela sexta-feira, mas duas horas antes da cerimônia, abriu: o sol saiu completamente, dourado e morno, emoldurado por um céu azul de esparças nuvens. Uma monarca pousou no meu buquê. A natureza celebrava com delicadeza e graça. Uma brisa constante soprava nossos cabelos. Não quis me importar mais com laquê: daquela hora em diante deixei o vento soprar, o cabelo assanhar, o salto doer, o batom escorrer. O barco que serviria de altar estava decorado com flores brancas. O barco que simbolizava a grande jornada na qual estávamos embarcando e que nos traria sorte para passarmos a vida viajando como sempre sonhamos. A violinista tocava Bach. Passageiros e tripulação somavam 13 pessoas, número forte: minha mãe, os padrastos e sobrinhas de W., a juíza amiga de faculdade de W., o casal de testemunhas, a violinista e o amigo capitão do barco. Decidi de última hora que queria ser levada até W. por minha mãe. Ele me esperava no barco vestindo camiseta preta, blazer e calça marfim, combinando com meu vestido. Eu não conseguia parar de sorrir.

Navegamos até o meio do lago. No percurso, famílias e pescadores prestavam atenção no barco florido. Ancoramos e então, em meio às águas do Casablanca, a juíza leu os votos oficiais de casamento. Só ali foi que a ficha caiu completamente: era tudo verdade, eu estava me casando e aquilo ali não era encenação. Eu estava me casando, e in English. Eu estava me casando com W., meu amigo que conheci há nove anos e que em menos de dez meses de namoro, duas idas dele ao Brasil e duas vindas minhas ao Texas, virou meu amor, meu esposo, meu digníssimo marido. Prestei atenção no discurso breve da juíza e também gostei do que ouvi: que a vida a dois não será fácil e que será preciso ter muita força de vontade para superar as dificuldades. É bom ser avisada destas cláusulas contratuais emocionais. Eu e W. também lemos em voz alta um voto de casamento celta que escolhi em sua homenagem. O que mais me encantou neste voto foi que trata o homem e a mulher como iguais, nenhum dono do outro, mas ambos pessoas livres que oficializam por vontade própria que cuidarão um do outro. As cerimônias de casamento celtas eram realizadas por uma sacerdotiza, portanto foi uma bem-vinda coincidência (existem coincidências?) que tivemos uma juíza celebrando a nossa.

Trocamos as alianças -- e pela primeira vez vi sua reluzente e dourada aliança celta fazendo par com meu diamante de noivado. "Yes, I do", ele disse. "Yes, I do", eu disse. O beijo. Por fim, incorporamos um ritual brasileiro de ano novo, porque assim como o ano novo o casamento é um começo: cada convidado recebeu uma rosa branca e fez um desejo ao seu Deus pedindo bênçãos aos noivos. Havia cristãos, judeus e mulçumanos reunidos.Em seguida, todos jogaram as rosas ao lago. Nosso lago de rosas. Treze rosas brancas alimentando as águas. Fiz um breve discurso de agradecimento aos que estavam presentes. A voz embargou e as lágrimas escorreram. Estouramos champanhe e comemos os bem-casados e alfajores que minha vizinha petrolinense que fez questão de enviá-los. Borbulhas e doces para brindar a nova vida, do jeito que eu gosto.

Dali partimos para jantar num tradicional hotel de Laredo, o La Posada, num esquema super informal de cada convidado pagando o seu jantar. Aproximadamente outros 10 convidados se juntaram a nós. Partimos o bolo encomendado especialmente para cerimônia. Juntamos todas as solteiras e nos dirigimos ao pátio. Tirei o salto alto e me deixei ainda mais à vontade. Começar a vida nova sem torturas! Subi uma escadinha e joguei para trás o buquê de rosas brancas que caíram nas mãos da minha instrutora de hidroginástica, que não apenas tem se mostrado uma amiga querida, como também tem uma longa história de amor com o Brasil. Não, certas coisas não podem ser apenas coincidências.

Tantas bênçãos, tantos símbolos, tantos planos, tantos desejos de sermos o melhor que podemos ser. Tantas decisões tomadas em nome de se iniciar uma família, como a minha decisão de mudar de sobrenome. Jamais imaginei que faria isto. Não faço parte de nenhuma família tradicional ou conhecida, mas sempre tive orgulho do nome que fui registrada. Por que eu tenho que mudar e não meu marido? Mas mudei. Foi meu presente a W. e sei que ele gostou, pois não esperava isto de mim. A legislação brasileira não permite que eu omita meu sobrenome, portanto apenas acrescentarei ao final o sobrenome do meu marido. Dentro de casa sinto que algo mudou. Dentro de mim sinto que algo mudou. Me sinto mais segura. Agora esta também é a minha casa. Agora as decisões serão tomadas em conjunto. Agora é oficial e gosto desta sensação de ordem que a oficialização traz. Gostei de morrer solteira para renascer casada. E que venham as outras fases e ritos de passagem. A viagem continua.

3 comentários:

  1. Prima, que lindo seu casamento...Seja muito feliz nessa nova vida,e espero, mesmo distante acompanhar, vibrar por cada conquista do casal.
    Amo vc!!!
    Beijo grande da prima, Laura

    ResponderExcluir
  2. Até agora ainda estou arrepiada e emocionada com o relato do seu casamento. Você foi muito modesta quando repetiu que "gostava de brincar com as palavras também". Ju, você escreve lindamente e como falei no início, suas palavras me emocionaram.
    Beijos!!!

    ResponderExcluir
  3. Quando vi suas fotos do casamento no orkut, não tive nenhuma dúvida que elas tinham algo mais, todas exalavam poesia. E lendo agora sua descrição, percebi que eu havia acertado qd senti toda a emoção e o perfume deste dia mágico e especial.
    Ah! E tudo estava lindo, vestido, cabelo, maquiagem, buquê, paisagem...
    Parabéns! Felicidades!!!

    ResponderExcluir

Eu adoro um comentário sobre as minhas coisices. Escreve, escreve!